PÃO DE VIDA
Dos primórdios da Obra da Rua
Vivemos num mundo novo em crescente globalização, sendo que o ambiente digital foi ganhando supremacia nas comunicações, no qual muitas pessoas vivem hiperconectadas, com muita gente atrás da última novidade, considerando que os instrumentos se desactualizam rapidamente. Neste mês primeiro de 2023, continua infelizmente a terrível guerra na Ucrânia e outros focos de conflitos, em que os frágeis são as maiores vítimas.
A Obra da Rua celebra 83 anos de vida - tantas vidas!!!... É de dar atenção também às coisas simples do quotidiano e que têm o seu devido valor, especialmente afectivo. É notório que vai escasseando a correspondência escrita à mão e que é um privilégio receber pelo correio. Uma boa amiga, Maria da Graça, pegou na caneta e deu-nos algumas notícias simples e a ter em conta, que nos atrevemos a partilhar, com gosto e gratidão. Ao olharmos para a sua caligrafia, perguntamos: - Onde é que já vai a antiga instrução primária, com defeitos e virtudes?... - Noutros tempos, muitas crianças e adolescentes injustamente não frequentavam nem prosseguiam estudos. Eis algumas linhas dessa cartinha: Com votos de boa saúde e paz para todos, venho por este meio enviar uma migalhinha para o querido jornal O Gaiato. Os meus 79 também já me trazem limitações e a pequena reforma faz o resto. Consegui arranjar uma nova assinante. Com um obrigado ao Gaiato pelo bem que me faz ao lê-lo. Esta missiva tem no sobrescrito uma terra com significado para a história da Obra da Rua: Vila Nova do Ceira! Foi nessa linda terra, outrora Várzea de Góis [até 1927], por onde corre o Rio Ceira, que o Padre Américo continuou em 1937, depois de S. Pedro de Alva, as Colónias de Férias do Garoto da Baixa de Coimbra. De facto, vieram reclamar uma casa permanente - de família - para os filhos das ruas, onde fossem acolhidos 24 horas - com cama, mesa, roupa lavada... sob o sinal da Cruz!
Este preâmbulo desafiou-nos a continuar nesta senda de procurar dar notícias de outros tempos, fundamentadas, num desiderato que nos parece ter sentido não negligenciar e em atenção aos mais incautos: as raízes e o crescimento de uma árvore antiga e frondosa, com atenção aos sinais dos tempos e que se preza muito de ser da Igreja. Ao longo de oito décadas, foram surgindo ventos contrários às vontades do fundador e de continuadores que acabaram por partir alguns ramos, deixando muitas lágrimas nos olhos dos seus filhos, e dos verdadeiros amigos e apaixonados dos sonhos pela dignidade humana de Pai Américo, cujo coração sangra: Lisboa, Moçambique... De referir que - até à sua morte e logo a seguir - foram deixados: o Lar do Ex-Pupilo das Tutorias e dos Reformatórios do País, o Lar do Gaiato de S. João da Madeira e a Casa do Gaiato de Ponta Delgada. Com a recente entrada do novo Bispo de Angra, D. Armando (a quem auguramos uma missão frutuosa!), é de dizer que não são do conhecimento geral as razões de fundo do afastamento da Casa do Gaiato nos Açores - da comunhão da Obra da Rua. Com o testemunho escrito de Padre Américo, na altura confidencial, há-de surgir a vez de nos referirmos a essa questão dolorosa, como esclarecimento necessário.
No sentido de mais outro abeiramento aos primórdios da Obra da Rua, sublinhamos para já um pensamento de Pai Américo que vale a pena transcrever: «Aqui há dias vinha uma carta a dizer que a Obra da Rua, por alcunha do Padre Américo, é uma obra de Deus. Esta sombra confirma. É a Luz quem projecta a sombra...» [O Gaiato, N.º 189, 26 Março 1952, p.3].
Assim sendo, quatro anos depois da fundação da primeira Casa do Gaiato, Padre Américo publicou um artigo [com sete páginas], no seu belo estilo de escrita viva e peculiar, no Boletim da Assistência Social [N.º 10, Dezembro 1943, Ed. Sub-Secretariado de Estado da Assistência Social, Lisboa, p. 434-440], sob o título: Obra da Rua - Obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes. Depois, foi saindo como folhetim no jornal O Gaiato, desde meados de Abril de 1944. Rememorando parte do que escreveu, sobre os seus trabalhos de pioneiro pobre e determinado ao serviço dos últimos, na Igreja - Recoveiro dos Pobres, como repetia - avivamos o que narrou sobre a Casa do Gaiato de Coimbra, em cuja Diocese foi ordenado Presbítero e enviado a servir os Pobres. Eis:
«Este nome «OBRA DA RUA» é todo um programa do Evangelho que trata de consolar os humildes onde quer que os vê caídos.
É assistência apaixonada a brotar do coração e a correr naturalmente, dando-se e vencendo, como faz a água das fontes, em cursos silenciosos.
Caótica em seus primórdios, tomou mais tarde feição ordenada e hoje desdobra-se em quatro capítulos, que são outros tantos redutos de amor:
I - Casa do Gaiato de Coimbra, sita na freguesia e concelho de Miranda do Corvo.
II - Casa do Gaiato do Porto, sita na freguesia de Paço de Sousa, concelho de Penafiel.
III - Lar do Pupilo dos Reformatórios, em Coimbra. [...].
CASA DO GAIATO DE COIMBRA
O nome é um feixe de luz que define a instituição, toda simples, original, eficaz.
A primeira casa a ser fundada, foi a de Coimbra, em Janeiro do ano de 1940, com três pequenos da rua. Pensou-se dar à obra nascente a feição de casa de repouso e ter ali em período de cura o filho do Pardieiro; tendo realmente sido ocupada em primeira mão por rapazitos pobres, recrutados nas zonas do pobre.
Era trabalho das nossas mãos. O médico examinava. O catraio seguia. A cura fazia-se num instante, com banhos de sol em cordilheiras de leite. Alguns vinham ali tomá-lo pela primeira vez em sua vida; era um delirar!
O Zezito Teixeira, depois de levar ao fundo a malga, grita de contente:
- Ai que vossemecê tem uma cara tão bonita!
Um outro, a fumegar de contente, trepa à mesa, dá-nos um beijo na face e revela:
- A gente em casa não toma leite!
Já não podia ser por mais tempo Preventório o que estava talhado para ser Casa do Gaiato. Ninguém tinha alma de mandar embora o pequenino curado. Mudou-se de opinião.
Alargou-se a Obra para receber mais gente, que era justamente o problema. Comprou-se uma casa contígua, pela morte do seu dono. Mais outra anexa, por troca. Um terreno para construir a nossa capela. Igualmente outro de cultura, para dar que fazer.
Instalámos luz. Fomos buscar água a meio quilómetro. Tratou-se de gados, de alfaias, de ferramentas. Pedimos um posto de ensino ao Ministro da Educação Nacional. Doía-nos a sorte da criança abandonada. [...]» [p.434].
Sobre os primeiros tempos de vida desta Casa para garotos da rua, é de notar que recebeu preferencialmente rapazes doentes pobres, daí o seu primeiro nome: Casa de Repouso do Gaiato Pobre. O necessário e gradual aumento das instalações e dos recursos - para ir oferecendo características familiares, educativas e cristãs, num ambiente rural saudável - foi-se justificando com o aumento dos pedidos de acolhimento, considerando muitas situações de miséria clamorosa num contexto difícil de escassez, devido às consequências da II Guerra Mundial. Dos caboucos da Obra da Rua, continuaremos com a pena original de Pai Américo.
Padre Manuel Mendes