PÃO DE VIDA

O ambiente na educação do Gaiato

Américo Monteiro de Aguiar, depois Padre Américo, foi residente no Seminário de Coimbra de Outubro de 1925 a Janeiro de 1940. Nas suas missões pastorais, por mandato do Bispo de Coimbra, por assim dizer, andou vários anos em vida nómada - como Recoveiro dos Pobres, sendo pastor de almas, de pobres. Isto como os pastores à procura das melhores pastagens para os seus rebanhos, considerando que este veio histórico tem profundo significado bíblico, desde o Antigo Testamento [Ricardo Rabanos, C.M. - El Pastor Biblico. Madrid: Ed. Studium, 1963]. Uma década depois da sua ordenação de Presbítero, em 1929, foram sendo dados os primeiros passos da Obra da Rua numa vida sedentária: uma Casa de acolhimento, permanente, em ambiente rural, saudável e para promover a dignidade humana dos filhos pobres das ruas. Certo é que esta acção pastoral - sacerdotal, educativa e social - foi sendo notada pelos mestres universitários, positivamente, na Lusa Atenas, como o Prof. Émile Planchard [1905†1990], da Universidade de Coimbra. Este Pedagogo belga, Doutorado em Lovaina, afirmou: o Padre Américo «fundou a Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, com o fim de beneficiar um grande número de crianças necessitadas das vantagens da vida ao ar livre, de uma alimentação conveniente e de uma educação apropriada. Os pensionistas saem dali armados moralmente e fisicamente para a vida [A Pedagogia Escolar Contemporânea [5.ª ed., Coimbra, 1967, p. 559].

A Casa de Repouso do Gaiato Pobre deixou de ter no papel timbrado este nome original, porém ia continuando a acolher rapazes pobres - com mazelas e necessidades (físicas, psicológicas, morais e espirituais) muito urgentes. De 68 Fichas Médicas [1947-1952], referentes a Rapazes e alguns colaboradores, que localizámos e em arquivo nesta Casa, verificamos isso mesmo: v.g., Artur Joaquim Saraiva, de Coimbra - apelido Zé Bolas, com 10 anos, acolhido em 1-III- 1946 - tomou a 1.ª dose da vacina anti-tífica em 2-XII-947 e começou a tomar óleo de fígados de bacalhau em 1-XII-49. Vemos aqui Pai Américo como um precursor em matéria de Higiene e Medicina, nas Casas de acolhimento residencial para menores pobres.

Sendo um profeta de Deus, nesse imperativo de amor ao próximo e justiça, pelas asperezas do caminho surgiram incrédulos e dificuldades burocráticas, e também amigos! O Fundador da Obra da Rua confessou assim: «O nome de Gaiato não foi recebido, sem uma natural ou qual relutância. Também o alvará não me foi concedido às primeiras; o então Ministro do Interior mandou saber das possibilidades da futura Obra, por intermédio do Governador Civil de Coimbra. A carta veio-me ter às mãos com uma série de questionários. Eu li e despachei: A Obra já tem dentes. E remeti o documento assim informado. [A Porta Aberta, Paço de Sousa, 1952, p. 4].

Esta Obra nova foi fundada na Casa e Quinta de S. Braz, no lugar de Bujos, em Miranda do Corvo, que viu e tratou no mês de Julho, de trinta e nove [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 44]. De acordo com documentos em arquivo nesta Casa e na Cúria Episcopal de Coimbra, em 3 de Outubro de 1939, o Padre Américo Monteiro de Aguiar, como procurador da Sociedade Instrutiva Ozanam, da Diocese de Coimbra [pois, a Obra ainda não tinha Estatutos] comprou essa casa de campo por quarenta mil escudos, conforme Escritura feita em Coimbra, na Rua da Sofia, n.º 121, perante o Notário Augusto Máximo de Figueiredo, como procurador de Aníbal Ferreira da Gama e Esposa, moradores em Lisboa.

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Continuando a transcrever o artigo em atenção, referido supra, entretanto, Pai Américo debruçou-se sobre o ambiente na educação dos Rapazes da Rua. Eis: «[...] Uma quinta é condição. O garoto da rua exulta nos trabalhos do campo, em contacto com a vida, que ele mesmo vê brotar. Quere [sic] saber. Admira-se:

- Eh tanta coisa que a gente aqui vê.

Que viam eles no beco, na viela, na taberna, na família! E que olhos tinham eles para ver? Os olhos são a janela da alma; dar à criança panoramas saudáveis é salvá-la.

Esquece. Liberta-se. Sente-se filho. Trata pelo nome de pai os que o orientam. Aprende por si mesmo estes sentimentos delicados, na terra, nas plantas, nas flores.

O trabalho nas nossas casas é estruturalmente familiar; brio, interesse, amor. O pequeno mostra os calos, como troféus de glória:

- Olhe eu.

Cada um os seus, com gracioso ciúme:

- Olhe, eu mais.

A obrigação terminada, vêm comunicar e pedir outra. Se o rapaz já merece confiança, aceita-se o que ele diz, se não manda-se um fiscal.

É trabalho muito demorado e muito doloroso, destruir na criança da rua o hábito da mentira. Ela é a arma com que se defende dos pais e do próximo. Aprendeu no berço. Toma-a como um bem. Antes que conheça e sinta o seu mal, tem de ele mesmo fazer sangue no educador e deixar que nele o façam.

Oh! missão sublime de educar. Oh! segredo divino de transformar em homens de bem, os maltrapilhos da rua.

O rendimento social é de cem por cento, quando o pequenino descobre que está em sua casa; que tem liberdade de ir à cozinha buscar pão; que pode rapar o tacho das papas, solene e descuidado. Quando se vê com anos festejados no dia em que os faz. Quando recebe o prémio das suas acções num passeio a Coimbra, onde vai tomar chá à melhor pastelaria, nas barbas do antigo companheiro, que o saúda deslumbrado:

- Ó coiso, tu estás bestial!

Rende cem por cento, quando ele chama nosso às coisas de casa, por sentir que tudo é dele. Cem por cento, finalmente, quando se sente amado; e isto basta para quem deseja sê-lo e nunca o foi. [...]». [Boletim da Assistência Social, N.º 10, Dezembro 1943, p. 434-435].

Num contexto de penúria e fragilidades humanas, deste interessante folhetim sobre a vida real de muitos filhos pobres, acolhidos em ambiente familiar - os gaiatos do Pai Américo - daremos mais notícias, com lições que valem bem a pena meditar, para se entender melhor os fundamentos da Obra da Rua - obra social com mãos humanas, nova em Portugal e da Igreja!

Padre Manuel Mendes