PÃO DE VIDA
Fazer bem às almas
A Covid-19 causou uma pandemia que colocou em crise um dos pilares que sustenta a vida humana. De facto, neste contexto, emergiu com mais acuidade a pergunta: qual o sentido definitivo da vida?… A ausência desta questão tem sido notória no mundo em que vivemos e causa incomodidade, como na crispação sobre a eutanásia. Vivemos numa cultura fragmentada e plural — líquida. O mundo é cada vez mais ruidoso — com menos tempo para o silêncio e a reflexão. Os meios de comunicação adquirem protagonismo demasiado, e ocupam muito as mentes e os sentimentos humanos, pelo que ocorre perguntar: Deus tem lugar, na vida humana?… Noutras vertentes, ao surgirem catástrofes naturais destruidoras (v.g., na Turquia) e continuarem os horrores de guerras sangrentos (v.g., na Ucrânia), vem a pergunta implacável: Deus está em silêncio?…
Neste espaço — de sem sentido — surgem as virtudes teologais — fé, esperança e caridade — como infra-estruturas constitutivas da existência humana, que orientam a pessoa humana para que viva consciente e responsavelmente, com o sentido da vida e a abertura ao Transcendente — o Mistério de Deus. A vida e a morte de Jesus são a revelação de que a vida humana entregue por amor tem sempre presente e futuro, pois surge da esperança da Páscoa — a cruz é fonte de Vida [Jo12,24]! Na História dos povos, há acontecimentos terríveis; contudo, a história humana tem de ser História de Salvação, da promessa de um novo céu e uma nova terra [Ap 21,1]. É nomeadamente no sofrimento e na morte que Deus revela o Mistério de Deus e do próprio ser humano: «O centurião que estava em frente d'Ele, ao vê-l'O expirar daquela maneira, disse: 'Verdadeiramente este homem era Filho de Deus'.» [Mc 15, 39]. Acontece num encontro pessoal com o Outro e com os outros, que vêm ao nosso encontro para nos conduzirem à Fonte de Água pura e viva!
Nos incontáveis encontros com pobres, frágeis e doentes, Pai Américo teve muitas experiências fortes da presença do Crucificado e Ressuscitado no mundo, que entregou a Sua vida para libertar todo o ser humano do pecado e da morte. Eis:
«Se os moribundos pudessem dizer aos que ficam aquilo que vêem, quando já não vêem nada, e aquilo que ouvem, quando já não ouvem nada…! O deixa ficar tudo e dá-me contas, é todo o mistério da morte.
A gente tem a paixão do tugúrio e queima as asas dentro dele, na vida de quem lá mora, como fazem as borboletas contra a luz das candeias. Meu senhor, mas eu nunca lhe fiz nenhum bem, nem posso jamais retribuir tudo quanto me tem feito.
Ouvimos e saímos a murmurar a mesma prece ao Deus Invisível e Imortal, usando as mesmas palavras e sofrendo a mesma confusão do pobrezinho que deixamos ficar.
E o padre, coisa reles, que dantes era assobiado à porta da oficina, é agora o mensageiro de Cristo que vai levar àquele operário a esperança na Vida Eterna, em horizontes de luz e de verdade: Meu caro amigo, tenha confiança em Deus, de quem tem recebido, pelas nossas mãos pecadoras.» [Pão dos Pobres, vol. I, Coimbra, 1941, p. 95.].
Por estes dias quaresmais, numa vaga de frio e preocupações, também burocráticas, ainda foram possíveis alguns encontros marcantes. Na verdade, sublinhamos dois com dois irmãos, em sítios portucalenses, que ficaram separados na infância em orfandade, por carências em tempo de II Guerra Mundial; mas que foram lutando com perseverança pela vida, numa oficina e guardando ovelhas. Actualmente, humildes e simples, muito bem cuidados e aconchegados — um nonagenário com o Douro à vista, e uma anciã perto disso e em terra do Sousa — disseram-nos lucidamente, na sua vez: Obrigado! Obrigado!… A quem Deus promete, não falha! O nosso desejo, neste dia feliz de grande festa interior pelo 79.º aniversário d'O GAIATO, dois carros de milho, é tirado naturalmente de Pai Américo, como deixou aos seus vindouros: «É este o nosso ponto de mira: fazer bem às almas. […] O Gaiato esmera-se por dar somente aquelas notícias que o tempo não desgasta.». [O Gaiato, N.º 54, 23 Março 1946, p. 4.] Louvado seja Deus!
Padre Manuel Mendes