PÃO DE VIDA

Da formação moral e religiosa

Estas vertentes da formação integral nas diversas Casas da Obra da Rua são basilares no pensamento, nos escritos e na acção de Pai Américo, bem como na vida da nossa Obra desde os primórdios. Ora vejamos esta pérola preciosa: «O dar-lhes de comer é pretexto para educar: educação cívica, educação moral, educação religiosa. Há um segredo divino no meu palmilhar de cada dia, que não me deixa cair no chão: eu desejo encontrar na Eternidade, sentados à direita do Pai Celeste, todos aqueles garotos que me passam pela mão.» [Pão dos Pobres, vol. II, Coimbra, 1942, p. 138.].

Mais, ao longo da história da Obra da Rua, a formação moral e religiosa têm sido notadas por vários estudiosos. Desta vez, citamos o Padre Manuel Durães Barbosa [†12-I-2018] missionário espiritano, que apresentou um trabalho sobre pedagogo de renome e experiência pedagógica de verdadeiro valor, na Faculdade de Ciências da Educação, da Pontifícia Universidade Salesiana, em Roma [1971].

Diz assim: «Padre Américo como sacerdote e inspirado por verdadeiros sentimentos de caridade cristã, ao fundar a Obra em prol da criança abandonada, pretendia redimir esses pequeninos seres no sentido integral da palavra, isto é, realizar a `salvação´ dos seus protegidos.

A formação religiosa e moral desses rapazes é uma das suas grandes preocupações […].» [Padre Américo — Educação e sentido da responsabilidade, 2.ª ed., Porto: Ed. Salesianas, 1988, p. 69.].

Voltando ao artigo em apreço, respigamos mais uns parágrafos vertidos da vida em abundância dos garotos pobres e em estilo americano [de Pai Américo], sem hipocrisia e muito amor, educando assim em liberdade e responsabilidade. Demonstra bem o seu profundo conhecimento da personalidade humana, frágil e caída, mas a redimir em nome de Jesus. Eis:

«O gaiato das ruas é um ser à parte, ele é como que o mestre do seu educando — anda o carro diante dos bois. Sem ele se abrir, não se sabe como, quando, nem por onde lhe havemos de pegar!

Métodos, falham. Esforço, naufraga. Só a pedagogia do amor; amor de família. Respeita-se. Lapida-se a sua personalidade, sem pretender modificar, muito menos destruir. Ele há-de achar-se. Ele há-de dar fé. Nós respeitamos. Um caso: O Zé Maria, da Covilhã quis um dia fugir. Era dia de feira na vila. Ao fundo da quinta, passam magotes. Ele recorda; tem saudades. Caminha. Andou por lá o dia inteiro. Mendigou tostões como dantes — era pedinte de feiras! Alta noite regressa com a boca suja das amoras que comeu. Bate à porta, aparece o cozinheirito:

Ó rapaz, vai-te lavar e anda comer.

Não se lhe disse nada, mas o silêncio é terrível. Dias depois vem falar e conta de como roubava nas lojas e de como era castigado na polícia. Traz nas mãos uma peça de roupa, que dobra e redobra nervosamente; ele é um dos roupeiritos. Nota-se que o pequeno faz-se violência.

Estou arrependido — disse — hoje não o faria!

Isto é uma clareira; uma afirmação da Obra. São pedras imensas, vivas, com que construímos. Um beijo na face desta criança das ruas é o selo branco de perdão e de redenção, em maré de confidências. Respeitamos a personalidade. Deixámo-lo matar saudades na feira. Ele regressa e dá fé do mal; acha a consciência!

A necessidade da educação religiosa não se discute; ela é fonte de vida. Casa-se com as possibilidades espirituais de que o garoto é portador; ele é comparticipante da natureza de Deus, capaz de amar e de conhecer o belo, o justo e o verdadeiro.

O contrário, como se tem feito e ensinado. Como se faz e se ensina. Como se há-de fazer e ensinar — estas rajadas dos tempos são um mal necessário. São ideias — ciclones. Das piores, por causa da alma.

A piedade cresce naturalmente nas nossas casas, com a vida de relação entre os pequeninos habitantes. Eles são rapazes cem por cento, como convém. Nós temos todos os dias e a cada momento a questão, a rixa, a cabeça partida, o nariz em sangue.

Todas aquelas adoráveis tempestades, que só eles são capazes de levantar. Temos, sim. Mas a par disso temos igualmente lampejos do Céu. O padeiro faz um bolo pequenino, para cada um dos mais pequeninos e vai-lho dar na mão — Olha que quentinho! Se algum adoece, toda a casa sofre. O doente nunca está só, nem se proíbe a ninguém de o ir visitar. Morreu-nos um de morte preciosa. Já lá vão meses e continua a prece em comum, nas nossas casas, à hora das orações: — Por alma do nosso Marcolino! […].» [Boletim da Assistência Social, N.º 10, Dez. 1943, p 435-436.].

Continuaremos com esta temática importantíssima e delicada, pois vem da profundidade misteriosa da criatura humana, que foi criada boa e só em Deus encontra descanso e salvação, por Cristo crucificado e ressuscitado.

Na celebração festiva do insondável Mistério Pascal — paixão, morte e ressurreição de Cristo — deste ano da graça de 2023, colocamos na patena do altar do Senhor da Vida todas as pessoas que vivem amarguradas e em lágrimas, bem como as que estiveram ligadas à família da Obra da Rua, desde os seus caboucos — durante cerca de nove décadas. Neste mundo, em grave crise ecológica e afastado da moral cristã, indiferente ao Deus verdadeiro e tremendamente ferido de respeito pela dignidade humana, marcado por inúmeros sofrimentos — mortes, guerras, doenças, solidão, fomes…– faz sempre sentido a Páscoa de Jesus, que sepultou o pecado, pela Cruz. O nosso único Redentor está vivo!

Padre Manuel Mendes