PÃO DE VIDA

Da formação religiosa e moral

Voltamos a estes temas de extrema importância, considerando a sua pertinência na vida da «Obra da Rua, uma Obra social da Igreja, aonde os nossos Bispos estão em sua casa.» — escreveu Padre Américo ['Nota da Quinzena', in O Gaiato, N.º 178, 23 Dez. 1950, p. 2.].

Na verdade, a sua acção eclesial com e pelos pobres teve sempre em vista o Caminho para o Alto, nomeadamente a partir da promoção humana dos rapazes das ruas — como revelou:«Ai de mim, se cuidasse unicamente da saúde dos garotos, e descurasse a sua educação religiosa! Ai de mim, se intencionalmente não fizesse de uma coisa e outra degrau seguro para subir alto até lhes tocar na alma! Ai de mim, que o pecado de omissão é matéria do tribunal de contas!» [Pão dos Pobres, vol. II, Coimbra, 1942, p. 129].

Assim, Pai Américo deixou aos seus continuadores esta forte vontade testamentária, no tocante à dimensão espiritual dos filhos da Obra da Rua:

«A vida religiosa nas nossas Comunidades seja o centro. As grandes aflições dos Padres da Rua tenham aqui a sua origem. Vale mais a alma do que o corpo. Por ela, pela alma dos rapazes, sangrem os Padres da Rua.

A nossa capela. A Missa dominical. O ensino da doutrina cristã. A prática das orações quotidianas. A presença de um padre espiritual. Os sacramentos. Pôr-lhes a mesa. Chamá-los ao banquete e chorar, se eles não quiserem. Chorar os nossos pecados.» [O Meu Testamento, Paço de Sousa, 1949, p. 5.].

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No projecto educativo da Obra da Rua, foi bem observado que o «Padre Américo, bem consciente do objectivo último de todo o seu trabalho, dá passos gradativos, embora estribando-se nos verdadeiros fundamentos — a dignidade humana.» [P.e Manuel Durães Barbosa — Padre Américo: Educação e sentido da responsabilidade, 1988, p. 70.].

Mais: «Assim aos movimentos agnósticos da Escola Nova, contrapõe a teoria psicopedagógica da Obra da Rua uma visão cristã da liberdade humana que lhe dá um sentido de responsabilidade que aqueles nunca puderam descobrir.» [João Evangelista Loureiro — Estruturação e análise de alguns princípios educativos da ´Obra da Rua´, 1966, p. 189.].

Retomando, assim, o fio da meada do artigo citado, seguem-se mais algumas linhas elucidativas da vida nos primórdios na nova família da Casa do Gaiato e de características peculiares de garotos das ruas:

«[…] Dão-se facilmente as coisas que se lhes dão. Alguns soluçam febrilmente de arrependidos, quando se lhes mostra, ou eles reconhecem, o mal que praticaram.

O Pepe é de Badajoz. Viu o massacre de 1937 [14-15 de Agosto de 1936], onde perdeu os pais e se apartou para sempre de um pequenino irmão. Não sabe dele. Levou 5 anos a chegar à Casa do Gaiato, gasto do tempo e mordido dos cães! Um dia, chega-nos um pequenino de 4 anos. Pepe levanta-se da mesa; rompe com o silêncio e a disciplina. Dá-lhe de comer. Acaricia. Chora. Explica o que todos tínhamos adivinhado — o meu irmão era assim!

Pudera revoltar-se contra o mundo que lhe roubou a família, mas não. Perdoa. Chora. Ama.

Vive em uma escola de amor. Ele há obras que não se fazem com dinheiro!

O rapaz abandonado, o filho das ruas, adora o clima em que vive, onde acha infinitas doçuras. Nem sempre o que chega às nossas casas, conquista. A adaptação, em regra, é lenta e muito dolorosa.

Nada no mundo que a caça ao tostão, a ponta do cigarro, o grupinho, a noitada. Nada mais reinadio que a chuva torrencial, o vento que bota abaixo, o frio que faz tiritar — nada.

Os pais, se os têm, não fazem caso; eles são um fardo. A senhora que dá o rebuçadinho, deixa-o em paz; ele é um berloque.

É isto mesmo que o rapaz pretende. Não quer ser perturbado.

A ordem é o inimigo número um. Ajudar o pequenino a vencer este inimigo, é coisa que se não descreve. Gostaríamos de explicar tratando-se, como se trata, do relatório de uma Obra de Portugal, para portugueses, mas não sabemos. É um segredo deles. […]» [Boletim da Assistência Social, Dez. 1943, p. 436.].

Tendo conseguido uma Casa permanente, em Miranda do Corvo, de família para os sem família, onde ia cuidando e aconchegando gaiatos abandonados à sua sorte, é de notar que Pai Américo continuou o seu apostolado perseverante junto dos pobres, pelas ruas e tugúrios. A sua missão evangelizadora foi acontecendo primordialmente em sítios de miséria, como verdadeiro discípulo de Jesus, Bom Samaritano, nomeadamente de 1929 a 1943, na cidade do Mondego e dos estudantes, que conheceu a sério e foi dando bem conta com palavras proféticas no Correio de Coimbra. Eis um retrato doloroso: «Quantas vezes, moinantes e matulões, calam o palavrão e deitam fora o cigarro, quando me vêem ao longe! Quantas vezes ainda, samaritanas maduras com amantes imberbes disfarçam a companhia e afastam-se um do outro, só porque eu apareço à esquina! Quantas, miseráveis esfarrapadas, a quem por vezes tenho dado a palavra salvadora, passam por mim de olhos no chão, por não a terem aceitado; que a sua anemia moral não suporta alimento forte. Quantas!

Ai! que se tu lidasses de perto com a miséria negra das ruas e com a doirada dos palácios, melhor e mais perfeita do que aquela — havias de compreender o Cristo do Gethesemani e amá-Lo mais!

Vós sois a luz do mundo! [Mt 5, 14].

Senhor, que eu jamais pretenda trocar aquela pela minha — para ser sempre luz!» [Pão dos Pobres, vol. II, 1942, p. 130-131.].

É bela esta simples oração, feita por quem pôs a toalha à cintura para acudir aos pobres e doentes. Temos mais algum deste pano para continuarmos, em tempo pascal.

Padre Manuel Mendes