PÃO DE VIDA

In Memoriam Padre Manuel Gonçalves

No dia 20 de Abril, quinta-feira, encontraram-se os Padres da Obra da Rua na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em reunião, como acontece na roda dos meses. Vindo das terras do Mondego, ao chegarmos ao Sousa e ao terreiro de Gamuz, mirámos bem o antigo Mosteiro beneditino do Salvador e subimos com emoção para concelebrarmos a Eucaristia na Capela do Santíssimo Nome de Jesus, onde Pai Américo quis campa rasa, pertinho do Santíssimo, sob um vitral do pelicano e à vista de S. Francisco de Assis. De facto, a coincidência revelou-se feliz; pois, esta Casa do Gaiato encontra-se a comemorar o seu 80.º aniversário de vida, considerando que Pai Américo recebeu nesse dia, no Porto, o claustro e a antiga quinta do Mosteiro para fundar a Casa do Gaiato das Ruas do Porto.

Eis que, da Cúria Diocesana de Coimbra, nos chegou uma mensagem sobre o passamento do sacerdote mais velhinho do Presbitério de Coimbra — o Padre Manuel Gonçalves, que partiu para a Casa do Pai, com 101 anos! Logo recordamos os nossos encontros amigos, pelo que registamos uma simples memória, como lembrança muito grata. Noutros escritos, já fomos deixando algumas informações biográficas, recolhidas em algumas visitas. No 70.º aniversário da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, honrou-nos com o seu testemunho, num Colóquio comemorativo. Em várias ocasiões, foi possível visitá-lo na sua casa, na Ranha de Baixo, feliz com a sua irmã Maria; e, depois, no Lar Rainha Santa Isabel — Pombal. Com base em notas suas, em informações da Cúria diocesana e noutras fontes, esboçamos mais umas sentidas linhas sobre o seu percurso de vida cristã.

Manuel Joaquim Gonçalves nasceu em 19 de Dezembro de 1921, em Ranha de Baixo, freguesia e concelho de Pombal. Frequentou a instrução primária na sua terra natal. Depois, em 2 de Outubro de 1936, entrou no Seminário Menor da Imaculada Conceição, na Figueira da Foz. Foi crismado em 29 de Maio de 1937. A seguir, foi aluno do Seminário da Sagrada Família de Coimbra, onde concluiu o Curso de Teologia.

Enquanto seminarista de Coimbra, colaborou nas exigentes Colónias dos Garotos das Ilhas do Porto, no antigo convento de Paço de Sousa, como Padre Américo registou, à sua moda: «Colónias de Campo — Dos colonos do terceiro grupo, temos a dizer que por pouco atingiam a perfeição… Ele pontos na testa, braços partidos, cigarros, assaltos. Era a rua! Oito deles fugiram! Tudo massa apta para ficar na 'Aldeia', sim; mas que é do espaço? Voltaram para o que é deles, completar a sua formatura e atingir a perfeição./ Gosta-se mais de sustentar os criminosos do que evitar os crimes. É mais cómodo./ Presentemente está o quarto e derradeiro grupo. Vieram 42 rapazes da marca. Por ora, não temos razões de queixa. O Manuel Gonçalves, de Coimbra, comanda. O Barbosa, de Parada, e o Baptista, de Cabeça Santa, e o Gonçalves, de Coimbra, tudo rapazes dos Seminários ajudam.» ['Colónias de Campo' — O Gaiato, N.º 66, 7 Set. 1946, p. 2].

Entretanto, recebeu o Subdiaconado em 21 de Dezembro de 1946; e foi ordenado Diácono em 1 de Março de 1947. No dia 5 de Abril de 1947, no salão de S. Tomás de Aquino, do Seminário de Coimbra, foi ordenado Presbítero, pelo Bispo D. António Antunes.

Em 12 de Junho de 1947, foi chamado ao serviço da Obra da Rua, na qual esteve até 24 de Julho de 1950. Durante esse tempo, colaborou e teve ao seu cuidado: a Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, o Lar do Ex-Pupilo dos Reformatórios e das Tutorias, o Lar do Gaiato de Coimbra e as Colónias de Férias na Senhora da Piedade. Deixou alguns escritos no jornal, dos quais recortamos algumas linhas, começando por estes propósitos evangélicos — de jovem e bom samaritano: «Gostaria que o mirante fosse às tocas onde vivem irmãos nossos, levasse luz a alumiar os degraus partidos, os caminhos escorregadios, os papéis a servir de colchão e os farrapos de cobertor. Sobretudo que os olhos que lá moram não tivessem medo dela, da luz, tão desconfiados dela, tão habituados à escuridão.» ['A caminho do Mirante' — O Gaiato, N.º 137, 28 Maio 1949, p. 3.].

Num artigo 'Mirante de Coimbra — Visitar os presos', deu conta da prática dessa obra de misericórdia, na Penitenciária de Coimbra: «'Quantos de nós não estariam aqui, se tivessem tido uma casa destas' — suspiravam tantos, depois de verem o nosso documentário 'A Aldeia dos Rapazes da Rua'/ Levamos cinema aos presos. Cinema dentro dos corredores gradeados, escuros e tristes. Cinema sonoro. 'Abençoada Obra' — diziam mais as lágrimas nos olhos do que a voz entrecortada de tantos. 'Isto é formidável!' — ouvia-se a cada intervalo./ Que alegria a daqueles vultos soturnos, ao saberem da alegre notícia de cinema para eles!» [O Gaiato, N.º 138, 11 Junho 1949, p. 2].

Depois, continuou o seu apostolado na Diocese de Coimbra, sendo nomeado Pároco de Cantanhede, onde entrou em 17 de Dezembro de 1950 e da qual foi Arcipreste; e daí saiu em 2 de Fevereiro de 1975. Acumulou esta missão, em 1966, com a de Pároco de Outil. Em 25 de Julho de 1954, deu-se o lançamento e bênção da primeira pedra do Bairro de S. Vicente de Paulo, do Património dos Pobres, em Cantanhede, com «a palavra edificante do Rev.º Padre Américo que, além da oferta de doze contos, quis estar presente, patrocinando desta forma»esta iniciativa [vd. Acta da reunião de 28-VII-1954, da Conferência masculina vicentina].

Em 9 de Março de 1975, entrou na Paróquia de Mata Mourisca; e a saída deu-se em 18 de Outubro de 1998. Foi o primeiro Pároco das Paróquias da Ilha, em 1989, e da Guia, em 1997. Desde Janeiro de 1999, foi Capelão da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, do Hospital de Pombal e dos Bombeiros Voluntários de Pombal. Nos últimos anos, foi residir no Lar Rainha Santa Isabel, em Pombal.

No dia 21 Abril, sexta-feira, foram as suas Exéquias, na Igreja de Nossa Senhora do Cardal, em Pombal, presididas pelo Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, participando vários Padres e Diáconos, Familiares e Amigos, que choraram a sua partida. O Prelado recordou a sua vida longa, bem como alguns gostos: a música clássica, o rachar da lenha e o capacete de bombeiro. No final da Missa, cantada [v.g., Luz terna suave, no meio da noite], a urna foi levada por sacerdotes; e depois seguiu para o cemitério simples da Ranha de Baixo, no qual debaixo de chuva copiosa, o Padre João Paulo Vaz fez a Encomendação. Que descanse em paz com Deus!

Tendo também acompanhado estes momentos de despedida, registamos o seu sorriso amigo, o bom acolhimento na sua terra e as belas fotografias que nos foi permitindo ver, sendo parte delas do seu tempo na Obra da Rua. Foi um pedido nosso aos seus estimados sobrinhos, a quem apresentámos sentidas condolências. Algumas fotos antigas e artísticas, emolduradas, encontradas na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, estão expostas no Memorial Padre Américo — Obra da Rua, em Paço de Sousa. A fechar, mais notas de testemunho pessoal, a registar: Numa fotografia com Padre Américo, no verso está escrito pela sua mão — Assafarge/ O gigante e o pigmeu! E guardou sempre lembrança viva de meu Pai Júlio e de um encontro significativo com Carlos Galamba, depois Padre, numa varanda da Casa de Miranda do Corvo, determinante para o seu itinerário vocacional. Os caminhos de Deus são insondáveis e os seus amigos deixam memória eterna!

Padre Manuel Mendes