PÃO DE VIDA
Educar é contrariar
O exemplo do Leonel, na Obra da Rua, é paradigmático da visão pedagógica acertada de Pai Américo sobre a Educação da pessoa humana, desde a infância, em que a confiança é uma chave do sucesso educativo, conforme as capacidades e a idade de cada criança, adolescente ou jovem. Este caso exemplar fez com que deixasse este pensamento lapidar: «Senhores pedagogos. Queimai os tratados, que está tudo errado. Quem quiser saber pedagogia, há-de estudar no próprio educando. Cada um é uma página diferente e todos fazem um livro.» ['Breves Notícias', in O Gaiato, Ano I, N.º 1, p. 3.].
No exercício gradual da liberdade e da responsabilidade, a educação dos mais novos há-de conduzir a agirem em conformidade com a natureza de homem racional, moral e social. Na verdade, a educação verdadeiramente humana deve ser moral, conforme sublinhou Roberto Zavalloni [1920†2008], Padre franciscano, especialista em psicologia educacional [La Libertà personale: Psicologia della condotta umana. Milano: Vita e Pensiero, 1965, p. 400.]
Outro dos aspectos importantes na vida das Casas do Gaiato, com estreita ligação, tem a ver com a tarefa atribuída pelo educador a cada Rapaz, pois a sua aprendizagem e o seu bom desempenho são determinantes no crescimento humano e na forma como vão sentindo a Casa como sua — nossa. Este excerto de Pai Américo continua muito actual: «Eu quero que o gaiato a meu cuidado se habitue a esta coisa simples e grandiosa: fazer a sua obrigação e que, desde pequenino, comece a obrigar-se a ela. Custa muito à criança, sim, obrigar-se a pequenas tarefas; educar é justamente contrariar, mortificar a vontade do educando. Custa muito, sim, mais custa ao que tem de obrigar, mas ele há alguma coisa de grande no mundo que se faça sem dor? É muito mais fácil deixar crescer tendências do que cortá-las.» [Pão dos Pobres, vol. II, Coimbra, 1942, p. 137.].
Como conclusão do capítulo Casa do Gaiato de Coimbra, do artigo referenciado, seguem-se algumas situações de vivências de outro tempo, que ilustram dificuldades de alguns Rapazes, acolhidos nessa comunidade. Sem anacronismo, com sombras e luzes, eis:
«O garoto absolutamente inadaptável é muito raro; até à data, houve apenas três casos sérios de deserção: O Ernesto, o Aníbal e o António Mau. Os dois últimos deram entrada no Refúgio da Tutoria de Coimbra; o primeiro desapareceu. Ora isto é quase nada, para uma obra social que se ocupa única e simplesmente do vadio das ruas e que não tem castigos, nem guardas, nem força obrigatória, nem prisão.
O fugitivo de pouca distância e demora é mais frequente, mas só o faz uma vez. No regresso, tal assoada lhe movem os companheiros, que ele jura para nunca mais!
A maioria é dos que chegam e vencem. Há casos absolutamente inesperados, que fogem a toda a regra, a todo o estudo, a toda a previsão. Um caso: O Luciano, sem casa nem família, é de Coimbra. Inteligente, simpático, qualidades estas altamente perigosas, anda na companhia de larápios e tem no activo numerosos furtos. Foi dar a Miranda. Encontrou-se feliz desde a primeira hora. Dá serventia a pedreiros, nas obras da nossa capela. Alguém pergunta-lhe se está contente e o que pensa fazer. Tem no momento, à cabeça, uma tábua de cal.
— Ando a ver se me venço!
Quem poderia esperar tal resposta de um tal rapaz? Este glorioso petiz é o mesmo que pediu em Coimbra, a um senhor, vinte escudos para o funeral da avó. Era mentira! Pois aquele mesmo senhor declarou, mais tarde, que nunca vira em sua vida lágrimas tão sentidas, nem cena mais bem representada!
Os nossos castigos não são de pau nem pedra, mas abalam os alicerces. São o quem não trabalha não come. Isto só; nu e cru.
Alguns entram no refeitório a chorar.
— Que tens tu?
— Vou comer pouco!
O Zé Carlos, do Alentejo, vai para a erva, nos campos. Os grilos tentam-no. Chega a casa cheio de grilos e vazio de erva.
Senta-se à mesa. O cozinheiro serve meia ração. Ele refila adoravelmente.
— Olha, mais erva e menos grilos.
Tudo ensina o pequenino, nas Casas do Gaiato; até os grilos.
Justiça. Verdade. Amor.
Com estas pedras edificamos monumentos, que são património da Nação.
Durante quatro anos de experiência, trememos, a estudar, a observar o rendimento social da Obra. Ele era para nós a única força que importava. Vivemos a vida de cada gaiato, em todos os seus minutos, e da vida de cada um fizemos a nossa vida.
Chegámos a uma conclusão. O pequeno afeiçoa-se. Toma gosto. Corrige-se. É feliz.
Torna-se necessário alargar. Fazer nossas as crianças abandonadas. Resgatar. Erguer um Portugal melhor com os portugueses.
No Norte, no Sul, em todas as cidades do País, dar casa aos pequeninos: Começou-se pelo Porto. O Leonel acendeu a luz.». [Boletim da Assistência Social, N.º 10, Dez. 1943, p. 437.].
* * *
De facto, rememorando: os primórdios da Obra da Rua, depois da Sopa dos Pobres — Coimbra [1932], remontam às Colónias de Férias de S. Pedro de Alva [1935 e 1936] e de Vila Nova do Ceira [1937 a 1939], bem como à Casa de Repouso do Gaiato Pobre, em Miranda do Corvo — Coimbra [1940]. Em Paço de Sousa [1943], inicialmente, a Casa do Gaiato do Porto funcionou no antigo Mosteiro beneditino; e, entretanto, foi sendo construída de raiz a Aldeia do Gaiato.
Em síntese, a Obra da Rua, com cada Casa do Gaiato, «é também uma grande escola de pedagogia e de sociologia», segundo José Maria da Cruz Pontes, que foi Professor na Universidade de Coimbra, num estudo pioneiro [Pequeno Ensaio sobre a Casa do Gaiato, Braga: Liv. Cruz, 1950, p. 5.].
Neste tempo paradoxal, arredio dos valores cristãos, lendo bem os sinais dos tempos, na fidelidade ao Evangelho e ao pensamento de Pai Américo, a verdadeira Caridade é um exercício profético e um desafio grande na Igreja — pobre e ao serviço dos pobres. A Obra da Rua, ao seu jeito simples, tem também o seu lugar — de serviço aos pobres!
Padre Manuel Mendes