PÃO DE VIDA

Notas pediátricas

É feliz uma metáfora, atribuída a Bernardo de Chartres [†1160], de que somos comparáveis a anões encavalitados aos ombros de gigantes. E Padre Américo foi um desses gigantes, da Caridade! Não será uma heresia científica dizer que o seu nome pode ser inscrito também na História da Pediatria em Portugal. Pela sua «acção estuante»[Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 59.], foi convidado para participar em 1952 no I Congresso Nacional de Protecção à Infância, em Lisboa, organizado pela Sociedade Portuguesa de Pediatria. Como sacerdote da Diocese de Coimbra, «nas visitas diárias à mansarda e ao tugúrio, topava legiões de crianças esfaimadas, deitadas no chão estreme ou sobre rimas de cisco, à espera da Mãe, que tinha ido pró rio, ou do Pai, que anda desempregado. E começou o dito padrezinho a dar preferência à sorte dos filhos, sem de todo descurar a dos pais.» [Casa de Repouso do Gaiato Pobre, Coimbra, 1941, p. 5.]. Na verdade, a sua fé cristã era viva: «A Obra da Rua tem a seu cargo e por sua conta a Casa de Repouso do pequeno pobre, nome indicativo da sua finalidade. É para acudir ao pequenino fraco, impedir que venha a sofrer da tuberculose, e dar lugar a outros pequeninos.» [idem, p. 17.]

Estas lembranças em que nos apoiamos, para vermos mais longe, ocorreram-nos a propósito da presença e actuação musical de vários Rapazes da casa-mãe da Obra da Rua — Banora, Sudewerton, Ladilson, Dércio, Mário Miranda, Norberto, Marcelino, Neio, Ayrone, Abubacar, João, Maio Mário, Leontino, Anelca e Adimir — com a professora Maria João, no dia 1 de Junho, dito Dia Mundial da Criança, no Hospital Pediátrico de Coimbra, a convite do amigo e Enfermeiro Nelas, realizando-se assim um sonho. Obrigado! É justo que testemunhemos aqui e agora a excelente acção deste Hospital, em incontáveis cuidados prestados a muitos filhos da Obra da Rua.

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Neste contexto da saúde infantil, vale a pena deixar algumas notas simples sobre a especialidade médica de Pediatria e de enquadramento do Hospital Pediátrico de Coimbra, como instituição de referência para os mais novos, no panorama histórico nacional desta área tão importante, considerando que as melhorias conseguidas têm conduzido à descida da taxa de mortalidade infantil em Portugal [de 64,9%, em 1965, para 2,4%, em 2020].

O que veio a ser definido como Pediatria surgiu por causa do incómodo de ter crianças internadas em sítios com adultos. Na assistência às crianças — especialmente frágeis e pobres — nomeadamente por Ordens Religiosas e pelas Misericórdias, noutros séculos, também se incluíam naturalmente cuidados de saúde. Acontece que uma criança não é um adulto em miniatura. Há cerca de cem anos, Jaime Ernesto Salazar d´Eça e Sousa [1871†1940] afirmou que a criança tinha várias épocas críticas [As Doenças das Crianças, Lx.ª, 1920.]. Actualmente, a Pediatria diz respeito à «medicina global de um grupo etário desde a concepção ao final da adolescência» [M.ª Teresa Neto e João M. Videira Amaral — Contributo para a História da Pediatria em Portugal, Lx.ª, 2022, p. 14.]

O primeiro hospital construído para crianças — Hospital da Bemposta — remonta a 1878. Devido às epidemias, foi ocupado por adultos; porém, tinha uma Enfermaria para crianças pobres — por vontade da Rainha D. Estefânia — sendo dirigida por Eleutério Gaspar Gomes [1824†1896]. Em 1936, na cerca do Hospital D. Estefânia, foi construído um edifício destinado a Serviço de Pediatria, dirigido por José Júlio Leite Lage [1876 †1961].

Na cidade do Porto, em 1883, surgiu o Real Hospital de Creanças Maria Pia. Em 1896, foi fundado o Dispensário para Crianças Pobres Raínha D. Amélia, pela acção do médico Júlio Cardoso. Depois, António de Almeida Garrett [1884 †1961] — autor do estudo Mortalidade infantil no Porto e meios de a evitar [1908] — conseguiu em 1925 uma Enfermaria para crianças no Hospital Geral de Santo António e participou na instalação da Maternidade Júlio Diniz. Em 1959, abriu uma Enfermaria de Pediatria no novo Hospital escolar de S. João. Em 11 de Dezembro de 2021, foi inaugurada uma nova ala pediátrica no Hospital de S. João, no Porto.

Em Coimbra, no início do século XX, havia uma Enfermaria para crianças nos antigos edifícios dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Também existiu actividade assistencial pediátrica no Instituto Maternal de Coimbra, criado em 1946; e transferido em 1963 para a actual Maternidade Bissaya Barreto. Em 1971, foi aprovada a adaptação do dormitório do Mosteiro das monjas de Santa Maria de Celas para sanatório pediátrico, por iniciativa de Fernando Bissaya Barreto [1886†1974] e José dos Santos Bessa [1905†1991], começando a funcionar em Junho de 1977. Em Março de 1975, o serviço de Pediatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra passou para a Maternidade Dr. Daniel de Matos. Em 29 de Janeiro de 2011, o Hospital Pediátrico de Coimbra foi transferido para um edifício construído de raiz, integrado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra [CHUC], com atendimento até aos 17 anos, inclusive. Entre outros médicos, referem-se: Henrique Carmona da Mota — primeiro director clínico [vd.´Os primeiros tempos do Hospital Pediátrico de Coimbra´, in Saúde Infantil, Set. 2007, p. 3-7.], Jorge Biscaia, Nicolau da Fonseca, António Nuno Torrado da Silva, Luís Lemos, Luís Borges, Horácio Rey Colaço Menano, etc.

Do Hospital Pediátrico de Coimbra cujo atendimento conhecemos ainda no Convento de Celas — entre os profissionais de saúde e mais colaboradores, recordamos com muita saudade e gratidão a Dra. Maria da Graça Domingues Rocha [†10-X-2017], do Montijo, médica pediatra e especialista em infecciologia pediátrica.

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Foi assim, com esta importante carga histórica — coimbrã e pediátrica — que esta família da Obra da Rua se deslocou à cidade do Mondego, muito sentidamente, no primeiro de Junho, para participar nas actividades propostas para as crianças, sendo muito bem recebidas no Hospital Pediátrico de Coimbra. De caras, logo O hospital sem medos,que é uma iniciativa pedagógica fantástica, com as suas diversas salas — em que os temores foram afastados com muito carinho e alegria! Depois, os pequenos músicos — da nossa Casa do Gaiato de Coimbra — abrilhantaram a sessão solene com os responsáveis hospitalares e muitos profissionais do novo Pediátrico. Seguiram-se, e bem, duas horas a percorrer os corredores, cantando e tocando nos átrios de algumas Enfermarias — ortopedia, cirurgia, oncologia, internamento de pediatria, hospital de dia. As mães e os pais, os meninos e as meninas enfermos esboçaram sorrisos, com as canções [v.g. — Obrigado, Jesus; bate o pé…], interpretadas pelos gaiatos do Centro, neste dia tão significativo junto deles — surpresa linda e inesquecível, apesar de tantas dores!

«Sempre que fizestes isto a um destes irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes.» [Mt 25,40]. Assim, foi sob o sinal da Cruz e seguindo Jesus, com o exemplo de proximidade aos irmãos e às irmãs que sofrem, também deixado por Pai Américo, bom samaritano, que os seus herdeiros e filhos deste tempo procuraram marcar o Dia Mundial da Criança 2023 [todos os dias são das crianças!], no Hospital Pediátrico de Coimbra. Na verdade, todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucos se lembram disso [Antoine de Saint-Exupéry]. Os pequenos doentes e tristes são verdadeiros heróis e gigantes nas guerras, como nas lutas contra as doenças que afligem a humanidade ferida, em tempos de desprezo pela vida humana. Deus nunca desiste de curar os males do ser humano, especialmente o mais frágil. Por este belo dia no Hospital Pediátrico de Coimbra, bem-hajam e saúde!

Padre Manuel Mendes