PÃO DE VIDA

Das marteladas em Américo Monteiro de Aguiar

história da vocação, isto é, do processo vocacional de Américo Monteiro de Aguiar é um filão interessantíssimo e fundamental para compreender a sua vida toda, pois todo o ser humano é uma vocação. É extremamente significativo que depois da sua ordenação presbiteral passou a assinar assim — Padre Américo! Sobre este assunto, referido por vários autores e a cuja investigação nos temos devotado com admiração [vd. Padre Américo — Itinerário Vocacional, Porto: UCP, 1999], alguma luz se tem feito para clarificar de certo modo esta questão, considerando principalmente as fontes disponíveis, de comprovada autoridade e probidade, para afirmar com alguma segurança o que de facto aconteceu, nomeadamente até à sua resposta decisiva ao chamamento divino.

Não há dúvidas, conforme é verificável, que o ano de 1923 e o mês de Julho constituem referências temporais a reter no seu itinerário vocacional. De forma sucinta, desta vez, cem anos depois das marteladas — conforme designou alguns chamamentos fortes de Deus — é de fazer memória simples de alguns momentos determinantes do seu percurso vocacional, apresentando algumas informações relevantes, com base em fontes seguras. Os documentos falam por si, historicamente, o resto são estórias…

Desde cedo — e comprovadamente na adolescência — que Américo Monteiro de Aguiar manifestou vontade de ser padre, de acordo com testemunhas familiares muito próximas e alguns amigos. Seguem-se, assim, alguns nacos de relatos significativos que atestam esta afirmação. O seu irmão mais velho, Padre José Monteiro de Aguiar [1874 †1947] — ordenado Presbítero em Cochim, a 18-XI-1900 — num apontamento biográfico, escreveu assim:

«Pensou-se em dar-lhe uma carreira eclesiástica e ele mesmo mostrou firmes desejos de a seguir. Pedia à Mãe para ser padre e esta escutava-o com vivo entusiasmo. Mas o Pai não concordava: 'O quê?! Não tem feitio para padre. Cantar, dançar, viola, pândega… Comércio, comércio. Não tem vocação para padre.'» ['Facetas de uma Vida', in O Gaiato, N.º 326, 1 Setembro 1956, p. 2.].

Da sua mãe, Teresa Ferreira Rodrigues [1847†1913], no epistolário conservado pelo Padre José, há uma cartinha preciosa para este tema, cuja ortografia vai conforme. Na verdade, em 1 de Junho de 1902, dá uma notícia importante:

«De saude bou passando grassas a Deos e todos os nossos.

[…] O Jaime escreveu dezendo que quer mandar algum dinheiro para a edocação dos rapazes com isto paresse que não quer que o Américo ba para o Comercio pois é mesmo o que eu e tu dezejamos paresse-me munto seguro tu escrever lhe e falar lhe a tal respeito dezendo que ajudas e o rapas que deve ser bão estudante pesso-te que me des andamento a este em barasso em que eu me bejo com este rapas elle tem munta bontade de ser padre bamos a ber se agora o podemos apanhar escreve ao Jaime e une te a elle dis lhe as calidades do rapas que os professores gostão munto delle a ber se a cruz bai ao Calvario em tão vivo mais 10 annos com este rapas a qui perdido munto me tem custado sendo elle como é fino a por me ter ser bom em fim convina com elle porque voltando para o Colejo é nessesario que entre no fim de Setembro por isso é nessesario não descordar é todo o tempo persizo». ['Facetas de uma Vida', in O Gaiato, N.º 477, 23 Junho 1962, p. 3.].

Tem muito interesse este documento materno, pois confirma a tradição oral familiar — sobre o seu desejo de ser padre — e o empenho em promover a instrução do Américo, nessa altura com 14 anos. Feito o exame da 4.ª classe, no Colégio de Nossa Senhora do Carmo, em Penafiel, encontrava-se a estudar, desde Outubro de 1899, no Colégio vicentino de Santa Quitéria, em Felgueiras, na companhia de seu irmão António [1884 †1916].

A educação do benjamim foi assunto muito debatido na família. A senhora D. Teresa empenhou-se a fundo para que fosse respeitada essa vontade do seu filho Américo, mas encontrou oposição do marido, Ramiro Monteiro de Aguiar [1848 †1921], na sua recta intenção.

Noutra carta, de 2 de Junho de 1902, enviada de Cochim para seu pai Ramiro, pelo Padre José, este irmão disponibilizou-se para assumir o encargo dos estudos do Américo:

«De novo lhe fallo no Américo. Se o pae vê que é mais útil e honrosa para a nossa família dar-lhe uma carreira literaria, mande-o para qualquer Collegio que eu pagarei. […] Enfim, o pae sabe o que mais nos convém. Um arrojo, embora frustrado, nunca ficou mal a ninguém. Em conversas que tive consigo, sobre elle, Américo não cheguei a adivinhar, e ainda hoje duvido do animo com que me fallava. Parecia-me ou que o pae via muito escolhendo a carreira commercial, ou que temia offender a bolsa dos irmãos para lhe dar mais alta collocação. Se fallava, movido por esta ultima supposição que faço, dispa tal temor, que elle ha-de chegar. Pergunte-lhe a sério o que quer seguir e deixe-o.» ['Facetas de uma Vida', in O Gaiato, N.º 479, 21 Julho 1962, p. 4.].

Noutra carta, de 1 de Agosto de 1902, a mãe Teresa escreveu ao seu filho Padre José, transmitindo parte de um diálogo com o senhor Ramiro:

«[…] Agora o que me aflije é a iducação do Americo que tantas vezes fallamos. Dis teu Pai que já é velho para entrar no collegio. Eu digo: 'os irmans pagam e querem. Que tens tu com isso?' — Querendo ir para Sarnaiche bai, para outra banda não tem geito por ter 13 annos. Eu não queria que o rapas fosse para o Brasil. O António ficou bem no emzamme. Se bisses a conversa que lhe fas a noute munto alegre… Para o Americo munto ma cara: — Não sei o modo de vida que eide dar aquele aquele rapas. Eu logo respondo: — Já sabes qual deve ser: Como manda o Padre e Jaime — Á tu cuidas que o dinheiro não lhe custa a ganhar? Para onde elle deve hir é para Sarnaiche — torna elle. Estou munto apaixonada por tudo isto. […]» [´Facetas de uma Vida´, in O Gaiato, N.º 478, 7 Julho 1962, p. 2.].

Na verdade, para que o Américo enveredasse pelos estudos eclesiásticos, foi apontado o Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim, no concelho da Sertã. Isto mesmo é confirmado por carta do pai Ramiro ao Padre José, cinco dias depois, em 6 de Agosto de 1902:

«Vou responder às tuas de 2 e 20 de Junho […].

Eis o que penso àcerca do Américo: Não o acho com feitio para padre; outra carreira pelas letras é tarde para a seguir, pois só aos 28 anos de idade a teria concluído, não perdendo ano algum, o que não é de esperar. E aqui tens um homem trabalhando meia vida e gastando dinheiro, que no quarto de vida que resta apto ou válido para o trabalho não o chega a ganhar. Ora o rapaz tem energias e faculdades de trabalho, isto é, aptidões variadas, e no comércio, se tiver juiso, aos 23 anos de idade pode ter, quando menos, meia subsistência ganha honradamente e sem sacrifício da bolsa dos irmãos. Bem basta sacrifício pelo António, que se não for pelo caminho das lettras todos os outros lhe são desconhecidos e para elle intransitáveis. Mas não quero contrariar a tua vontade, só exponho a minha opinião, e se queres que elle estude, estuda; assim como entendo que se quer ser padre entre no colégio de Cernache, o que eu entendo poder conseguir pelos meus amigos.» [Ibidem,
p. 2-3.].

Estes depoimentos são suficientemente explícitos das opiniões familiares sobre o caminho a seguir por Américo Monteiro de Aguiar. Continuaremos, como aos nacos de pão, com mais algumas partes desta viagem vocacional apaixonante, que intitulou — Caminho da Luz!

Padre Manuel Mendes