PÃO DE VIDA
Das marteladas em Américo Monteiro de Aguiar
Vale bem a pena rememorar,
trazendo à luz do dia, vários momentos e acontecimentos do percurso de vida de
Américo de Aguiar, pois vai-se encontrando um exemplo de homem verdadeiro —
honrado, zeloso e honesto — que foi procurando o verdadeiro Caminho para a felicidade,
conduzido pelo Bom Pastor.
Seu irmão Padre José Monteiro de Aguiar, missionário em Cochim — Índia inglesa, ao cabo de 18 anos, veio de férias a Portugal [e permaneceu], sendo recebido festivamente na Estação de Cete — Paredes, em 24 de Maio de 1909 [vd. Boletim Penafiel, N.º 1, 1972, p.53.].
Sobre o seu temperamento, à beira dos 23 anos, vimos uma cópia [autêntica, dactilografada e assinada] de uma cartinha humorada de Américo de Aguiar, do Chinde, datada de 20 de Setembro de 1910, a uma Emilinha — sua correspondente em Paço de Sousa e que distribuía donativos seus aos pobres — na qual escreveu: «[…] tem o descaramento de estar 4 meses sem me escrever?!!!».
Ao cabo do primeiro decénio do século XX, o contexto nacional, em Portugal, sendo de turbulência política e social, foi marcado pela queda da monarquia com a revolução republicana, em 5 de Outubro de 1910, agudizando-se a questão religiosa, com medidas persecutórias contra a Igreja Católica. Este inciso, a propósito da Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, é um lamento: «[…] Eu sou do tempo em que se queimavam igrejas e faziam festas às árvores e mandavam prás cadeias homens de bem; […]» ['A Nossa Aldeia', in O Gaiato, N.º 65, 24 Agosto 1946, p.1.].
Considerando o seu impacto e pela proximidade com Moçambique, em 18 de Abril de 1911, pelas dez horas da noite, deu-se o naufrágio do vapor Lusitânia — vindo de Lourenço Marques para Lisboa — na proximidade do farol do Cabo da Boa Esperança [vd. M. Simões Alberto e Francisco A. Toscano — O Oriente Africano Português: Síntese Cronológica da História de Moçambique. Lourenço Marques: Minerva Central, 1942, p. 253.], que levava a bordo 847 pessoas, salvando-se a custo quase todas.
Encontrando-se ao serviço de The British Central Africa Company, no Chinde, em 6 de Junho de 1911, escreveu ao seu pai Ramiro, com grande afecto filial, dizendo os motivos para não ir de férias junto dos seus familiares, conforme desejaria. Eis alguns parágrafos:
«Meu Pae
Por cartas que várias pessoas d-hai me escrevem sei que ainda vive e com saúde, felizmente. Eu vou sempre comunicando esta boa nova ao Jayme e os dois vivemos satisfeitos por saber (por gente estranha) que o nosso Pae vive ainda.
E agora, se o futuro e posição dos seus filhos ausentes lhe dá algum interesse, eu peço licença para lhe dizer qual o motivo porque não vou este anno a Portugal.
Acabei o meu contracto no dia 31 de Março do anno corrente e nessa mesma data pedi ao meu patrão a passagem para Portugal. Pediu-me elle que arranjasse um homem que me substituísse durante a minha ausência e que estivesse com elle pelo menos dois mezes para lhe mostrar a maneira como o meu trabalho é feito. Eu promtamente recebi o pedido e o homem veio, mas justamente quando estava para me ir embora, o meu substituto começa a mostrar muita pouca capacidade para desempenhar o meu logar. O meu patrão pede-me novamente para ficar, ao que me recusei. Pede-me mais uma vez e eu aceiptei debaixo dumas condições de grande alcance para o meu futuro. Fiz então que assignassem um novo contracto por trez anos com começo em 1 de Abril do anno corrente, onde aparece uma clausula que me dá seis mezes de licença no anno próximo de 1912 com passagens pagas e o meu ordenado completo durante esses seis mezes. Augmentaram-me o ordenado com mais L.2.0.0. por mez e deram-me L.20.0.0. por eu me resignar a ficar.
[…] Peço-lhe portanto meu Pae, que não se esqueça de seus filhos e que dê sempre que possa signal de vida mostrando-nos a sua letra, já que não pode mostrar-nos a sua pessoa.
Eu tenho muita saúde, felizmente, e muitas esperanças de ver a minha Mãe e todos os outros para o próximo anno.
Abençoe-me.
Américo de Aguiar.» ['Facetas de uma Vida', in O Gaiato, N.º 461, 11 Novembro 1961, p. 2-3.]. Nesta missiva, também refere divergências com o seu irmão Jaime Aguiar, que o aconselhou a não viajar.
Era notória, pois, a sua competência profissional, auferindo assim um vencimento elevado e com direito a merecidas férias. Porém, foram-se adensando as saudades da sua família.
E também se adivinham alguns sinais de uma crise religiosa, nesses anos de muito trabalho. Neste sentido, é significativo este recorte autobiográfico, posterior:
«[…] Estava eu, na minha mocidade, a ganhar o pão, fora da nossa terra. Éramos muitos empregados: Navegação marítima, navegação fluvial, caminhos de ferro, oficinas, escritórios — um mundo.
Católicos, dois. Um Irlandês e um Português. Os mais, protestantes de várias seitas. Eram muitos, naquele tempo, os dias santos de guarda. Eram muitos os nossos trabalhos nesses dias. Pois bem. O director da casa, um calvinista, entrava no meu escritório, batia-me no ombro de mansinho e dizia: The bell rung.
Era um dia santo de guarda. Tinha tocado o sino prá
missa. Tocou o sino. Não me mandava ir. Punha-me absolutamente à
vontade; a mim o determinar-me. Ora eu sou desta escola. Os tempos andaram.
Deixei a vida que tinha e fiz-me, mercê de Deus, sacerdote católico. Eu sou do
Papa. […]» ['Uma Carta', in
O Gaiato, N.º 89, 26 Julho 1947, p. 1.].
Nesse tempo de grande labuta, no Chinde, residia na chamada república do carapau frito, com outros companheiros, da qual se conservou uma interessante fotografia coeva [actualmente, no Memorial Padre Américo — Obra da Rua, em Paço de Sousa.]. Sobre a integridade do seu carácter, há testemunhos seguros, a reter proximamente. A sua estrela, ainda se encontrava encoberta; mas, iam-se preparando tempos de procura gradual — no Caminho da Luz!
Padre Manuel Mendes
[continua]