PÃO DE VIDA

Mais de 84 anos de vidas

«Foi no Beco-do-Moreno, em Maio de trinta e cinco, que o Miúdo me apareceu. [..]»

P. Américo! — Obra da Rua. Coimbra, 1942, p. 9.

A fonte da primeira Casa do Gaiato é sítio muito procurado pelos seus habitantes e também pelos seus amigos. Quando falta água, há inquietação. Parece-nos necessário, na proximidade do dia 7 de Janeiro, data emblemática na história da Obra da Rua, revisitarmos alguns escritos de Pai Américo — seu fundador com amor aos pobres e lucidez pedagógica e eclesial — para irmos descortinando o caminho a percorrer em fidelidade e na actualidade, neste serviço aos pobres na Igreja, isto é, se tem algum tino esta missão pastoral, considerando os escolhos que vão surgindo actualmente, como noutros tempos: «Toda a obra tem suas arestas, algumas tão delicadamente escondidas, que somente dá fé delas quem nelas se mete. Assim se marca e sela o êxito de toda a empresa, cujo capital é tirado do primeiro Mandamento; no próprio labutar nos confortamos, sabendo que sem efusão de sangue não pode haver obra que redima.» [P. Américo! — Pão dos Pobres, II, Coimbra, 1942, p. 84-85.]. Recordar esses momentos históricos é uma forma de lutar contra o esquecimento do essencial e de afirmar os fundamentos da identidade da Obra da Rua.

Houve, de facto, um momento fundante, em 7 de Janeiro de 1940, dia do Santíssimo Nome de Jesus, correspondendo exactamente à entrada dos três primeiros garotos pela mão de Pai Américo, na Quinta de S. Braz, lugar de Bujos, em Miranda do Corvo — a Casa de Repouso do Gaiato Pobre. Contudo, em 19 de Março de 1932, Padre Américo recebeu o mandato do Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, de cuidar da Sopa dos Pobres; e sob esse título foi assinando as suas crónicas — sobre a vida dos pobres que visitava e ajudava — no Correio de Coimbra, que depois mudou para Obra da Rua. Sendo sacerdote da Diocese de Coimbra, deu corpo — com a colaboração de estudantes do Seminário e da Universidade e outros voluntários — em Agosto de 1935, a Colónias de Campo — Colónias de Férias do Garoto da Baixa — na casa da Palmeira, em S. Pedro de Alva, chamado pelo Prior — Padre Simões e Sousa: «Vi o Beco-do-Moreno, a cama doente do artista, os quatro filhos sem pão. Não sei que me deu no peito, que o Prior quis saber o que eu tinha! Uma paixão, exclamei; e falei à moda dos apaixonados, que procuram o triunfo nos sacrifícios e o êxito na verdade.» [Obra da Rua, 1942, p. 16.]. Depois, seguiram-se na Quinta da Costeira, em Vila Nova do Ceira, e em Miranda do Corvo. A obra empreendida — com sangue, suor e lágrimas — prestava-se a comentários deste jeito, nessas terras de Penacova e da Várzea de Góis: «— Quê? Garotos da rua no meio de quintas; eles, o pior do mundo?! O padre está varrido. Sim, doido; o Evangelho é loucura.»; «o farmacêutico dizia aos amigos da botica: que pena ser isto obra de um padre!» [Idem, p. 17.].

Nos anos trinta do século XX e depois, a população portuguesa vivia «uma situação de dificuldades sociais e económicas, consequência ainda da débil situação económica do País, provocada pela I Guerra Mundial e pela crise financeira mundial de 1929, que teve um acentuado impacto nas condições de vida e saúde da população portuguesa» [Ana Paula Gato — 'O Estado Novo e a saúde dos pobres', in Desigualdades, Évora, 2020, p. 3-4].

Nesses tempos de miséria urbana — na cidade e nas periferias de Coimbra — havia sítios perversores, Padre Américo era residente no Seminário de Coimbra, mas percorreu-os vezes sem conta, para ajudar pobres e consolar tristes. Da sua tarimba, verificou in loco que urgia tirar garotos das ruas da marginalidade, para lhes dar a alegria de uma casa deles, por eles e para eles — com cama, mesa e roupa lavada. No tocante às raparigas em risco, focaram-se v.g. as Irmãs do Bom Pastor, sendo de notar também o seu acompanhamento espiritual no Refúgio da Rainha Santa, desde 1932. Eis alguns meios conimbricenses onde faltava o essencial: «Os lugares clássicos da piolhice, que em todas as terras têm seus nomes e na de Coimbra se chamam Bairro-das-Latas, Quinta-do-Poço, Arco-Pintado, Páteo-dos-Lázaros, Lojão, Casa-do-Inferno — são zonas tenebrosas, conhecidas somente de fachada, que lá dentro ninguém vai, a não ser a polícia! Eu também lá vou, por outras razões. O garoto ateima que eu seja mãe e chama-me para tudo.» [Obra da Rua, p.37-38]. Foi, pois, necessário dar aos rapazes pobres desses lugares uma família para viverem com dignidade, aspirando a valores mais altos.

A propósito deste aniversário festivo da Obra da Rua, entre outros, encontrámos a modos que um simples fio condutor nestas nove décadas. Ora vejam lá: na sopa! Ao botarmos os olhos em redor das mesas do refeitório, embelezado com um lindíssimo Presépio — cheio de figurinhas, à moda antiga — constatámos que alguns rapazes são mesmo biqueiros e passam logo para o conduto, deixando a sopa ao lado. Bastas vezes temos dito que — depois do primeiro almoço, de manhãzinha — o caldo é bem necessário numa alimentação racional, desde pequenos. A horta é um dos sítios privilegiados desta Casa, onde crescem viçosas e verdinhas centenas de couves tronchudas para enriquecer as refeições desta comunidade. Se nas tangerinas transgridem, na sopa regridem. Não tem faltado o essencial nas mesas, em termos de bens alimentares, pois honra lhes sejam — os nossos amigos, famílias e comunidades cristãs. Bem-hajam!

Então, vejamos um recorte simples dos primórdios, em que é notada a questão da sopa. Nada de novo debaixo do sol. Eis:

«A Casa do Gaiato já está habitada; os primeiros ocupantes deram entrada no dia 7 de Janeiro [de 1940], chuva a potes.

Parece que não se devia ter escolhido o pino do inverno, antes esperar os dias da primavera e instalar então o gaiato na beleza do seu florir. Mas não. Se tu soubesses como e onde eles vivem, havias de fazer precisamente o mesmo que eu fiz.

Como na vida das colónias, também aqui há seus episódios: na noite da chegada levanta-se um deles a berrar aqui-del-rei que me falta o ar e tenho medo do escuro. A gente acode depressa e canta ao pé deles o nana menino das mães!

No segundo dia namoram a sopa no prato, mas não podem com ela! Vindos de casas sem sopa, habituados como andam à dos quartéis e à das sobras, esta que se lhes apresenta, fumegante e reconstituinte, é luxo a que não estão afeitos. Temos de começar por culinária mais baixa, subir a qualidade em doses pequenas, graduar — curar a fome com a fome, como se faz com a neve aos que nela perigam.

Assim como há sopa que farta mas não alimenta, também há roupa que cobre mas não guarda o frio. O nosso Gaiato é sujeito destes dois predicados. Farto de sopa, com fome: Coberto de roupa, com frio.

Roupas na saquita, dádivas de pobres tão pobres como eles — guardam o corpo não o frio. […]» [P. Américo! — Pão dos Pobres, II, Coimbra, 1942, p. 87-88.].

Sobre a alegria de viver com garotos da rua, outra vez a sopa: «Um dos mais pequeninos, no final do jantar, disse: — Ó senhor Padre, vossemecê tem uma cara tão bonita! Maneira grata de dizer que a sopa estava bem-feita.» [Idem, p. 186.]

No desafio da sociedade portuguesa sobre acolhimento residencial, encontramo-nos numa encruzilhada como serviço eclesial. Acontece que a crise na habitação tem provocado um aumento de crianças sinalizadas às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens [CPCJ], havendo concelhos críticos — Lisboa, Sintra e Amadora. Na sua acção, como amigo de Deus e dos pobres, o Padre Américo tomou sempre como referência o Mestre: «Cristo Jesus entrava nas casas e nas sinagogas, mas a sua acção principal era toda na rua, in loco campestri.» [Obra da Rua, p. 60.]. O pobre clamou e o Senhor ouviu a sua voz! [Sl 34,7].

Padre Manuel Mendes