PÃO DE VIDA

Outra carta

No nosso tempo de fortes incertezas, as notícias, muitas delas de guerras infernais, assustadoras, da Ucrânia à Palestina, são difundidas principalmente no mundo digital. Parece-nos que ler em papel é outra coisa, mas a velocidade das novas tecnologias é enorme e qual será o futuro dos jornais impressos?… Na bela edição do 80.º aniversário d'O GAIATO, anunciámos outros manuscritos do espólio de Monsenhor Moreira das Neves, no Fundo bibliográfico da Biblioteca de Paredes. Para que os nossos amigos possam conhecer mais alguns linhos desta arca, permitam-nos outra aproximação.

Enquadrando mais outra breve missiva de Padre Américo, para além da Obra da Rua – de acolhimento e promoção dos gaiatos da rua — entre 1939 e 1945, durante o segundo conflito mundial, surgiram outra iniciativas meritórias de iniciativa particular como respostas válidas às crianças, adolescentes e jovens desprotegidos e abandonados, quais anjos de cara suja.

Neste caso em análise, referimo-nos à Obra do Ardina, sonhada pelo Padre Francisco Moreira das Neves e fundada por Maria Luísa Ressano Garcia [1912 †1972], em 1942 [vd. O Ardina, N.º 471, Jan.º/Março 2012], com o objectivo prioritário de proteger os rapazes pobres que vendiam os jornais pelas ruas de Lisboa. Um escrito jornalístico dessa autora, nas páginas do quinzenário da Obra da Rua, é elucidativo: «O Ardina é o pequeno vendedor de jornais, que leva uma vida de trabalho intenso das 5h 30 às 9h 30, a vender jornais da manhã, e das 16h 30 às 20h, a vender os jornais da tarde, numa vida de liberdade e até libertinagem, num inteiro abandono moral e físico. Por falta de amparo e carinho, e, sobretudo, de educação e instrução, a maioria destes rapazes perde-se na idade crítica dos 15, 16 anos, senão antes.» [Maria Luísa – 'Carta de Lisboa: A Casa do Ardina', in O Gaiato, N.º 5, 30 Abril de 1944, p. 4.]. Esta instituição particular de assistência aos ardinas germinou no coração de mulheres cristãs inquietas com a miséria social, como afirmou: «Assim levámos, nós, as Noelistas de Lisboa sete anos a sofrer e a sonhar com o ardina, mas… A Casa do Ardina já tem agora um ano de realidade prática, vivida, graças a Deus! Sem… dinheiro, está claro… A meio do mês, nunca sabemos como vamos pagar as contas do fim do mês… […] Mas – e aqui é a nossa amargura – só podemos abranger com esta Casa do Ardina um máximo de 60 ardinas sobre os 400 que precisam dela… São precisas mais Casas. […]» [ibidem]. De relance, diga-se que a União Noelista é um movimento católico fundado em França, em 1896, pelo Padre Claude Allez [1866 †1927], junto da gruta de Belém, e que chegou a Portugal em 1913. Por baixo dessa colaboração amiga, de notar este ferrete, doutro regime, num rectângulo: «Este número de O GAIATO foi visado pela Comissão de Censura»…

A carta em atenção, com o timbre da Casa do Gaiato das Ruas do Porto – Paço de Sousa e da autoria do Padre Américo, transcrita de seguida, diz respeito a um pedido de acolhimento de um rapaz, entre tantos que chegavam, como herdeiros forçados da miséria social. Ora eis:

«Paço de Sousa

10/ 2/ 44

Meu caro M.ª [Moreira] das Neves:

Vai aqui esta carta com o pedido de a entregar à M.ª [Maria] Ressano Garcia, para ela ver o q. há de verdade. Não sei a direcção dela.

Desconfio q. a carta não seja espontânea, mas sim de alguém q. escreve pelo rapaz; tem todo o jeito disso. Mas se é de facto do punho e da vontade do próprio, o caso merece a m/ atenção e eu mando aí um gaiato de Lisboa (tenho dois) pelo pequeno.

Em todo o caso, a Ressano Garcia q. indague e q. mande pormenores e q. me devolva a carta.

Saudades do

Amigo P. Américo!».

Na carta posterior [16/2/944], já transcrita, voltou à carga: «Ainda não me disse nada do suposto rapaz; já cá tenho outra». Quem seria o rapaz lisboeta cujo pedido foi repetido e motivou estas missivas?… Certo é que foi positivo o Padre Moreira das Neves ter guardado estas cartinhas, para ver bem a sua comunicação com figuras relevantes empenhadas na promoção da pobreza infantil desses tempos, de conflito mundial, em que as condições socio-económicas eram muito difíceis para uma parte significativa também da população portuguesa.

Padre Manuel Mendes