PÃO DE VIDA

Encontros com Pai Américo

No entusiasmante filão americano — diga-se do Venerável Padre Américo — continuamos a desvendar alguns manuscritos do espólio do Padre Francisco Moreira das Neves, na Biblioteca Municipal de Paredes. Assim sendo, é obrigatório publicar um belo testemunho pessoal, lido em 8 de Março de 1987, na sessão comemorativa do Centenário do nascimento de Pai Américo, na vasta sala do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a abarrotar de gente. O saudoso Padre Luiz, de grata memória, escreveu, a propósito: «Vamos, portanto, continuar a amar, em obras e verdade, os nossos Irmãos mais carecidos, os predilectos do Mestre, os Pobres que Pai Américo procurou servir.» [O Gaiato, N.º 1123, 28 Março 1987, p.1.].

A celebração «abriu com a magnífica conferência do Prof. Dr. Henrique Martins de Carvalho. Traçou o perfil do homenageado e disse ´não ser possível fazer a História da Igreja em Portugal sem incluir, com destaque, o Padre Américo´. Monsenhor Moreira das Neves referiu interessantes encontros com Pai Américo e a recente introdução do processo de beatificação. […] O sr. Cardeal Patriarca disse — muito bem, com oportunidade — […]» [Júlio Mendes — Idem, p. 3.] palavras de alto significado, escutadas numa grande celebração eclesial que não devia ter palavra de encerramento.

Antes disso, também dos seus papéis, um breve relato manuscrito desta comemoração:

«Na tarde de 8 de Março, realizou-se, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, sob a presidência do Cardeal Patriarca, D. António Ribeiro, uma sessão comemorativa do centenário do nascimento do Padre Américo. A grande sala de espectáculos encheu-se de uma multidão heterogénea, em que se viam mestres de ensino universitário, altas figuras da vida política e social, da vida católica e das obras de assistência, artistas, sacerdotes, estudantes dos liceus, gente anónima de todos os bairros citadinos e rapazes da rua.

O Prof. Doutor Martins de Carvalho fez uma conferência notável, traçando o perfil humano e apostólico do Padre Américo, com oportunas considerações de ordem doutrinária, habilmente aplicadas ao momento presente. Houve ainda vários testemunhos sobre a psicologia, a intensidade espiritual e a caridade sem limites desse extraordinário Pai dos Pobres, que foi o Padre Américo de Aguiar, a quem o Cardeal Patriarca prestou no final a mais eloquente e rendida homenagem.

Vários números recreativos executados por gaiatos crescidos ou de palmo e meio deram à assistência um esplêndido de alegria e entusiasmo.»

Após estas notas introdutórias, para memória futura, segue-se a interessante conferência de Monsenhor Moreira das Neves, em que deu testemunho doutros Processos de Beatificação, do início da Causa de Beatificação do Padre Américo e de alguns encontros marcantes. Ora eis:

«Coliseu dos Recreios

8. III. 87

Dois processos de canonização estão em curso, em que fui chamado a dar o meu testemunho canónico: o de Frei Bernardo de Vasconcelos, com quem mantive relações de amizade, principalmente durante a doença que o martirizou numa pequena casa da Foz do Douro; e o de Sílvia Cardoso, cuja vida extraordinária de contemplação e acção acompanhei de perto durante muitos anos. Só o meu testemunho sobre esta durou 9 horas, repartidas por três semanas seguidas.

Também já começaram os trabalhos preparatórios da Causa do Padre Américo. Dela foi nomeado o Postulador no dia 1 de Janeiro [de 1987], tomando posse no dia 8, o ilustre beneditino D. Gabriel de Sousa, que foi seu grande amigo e ainda seu primo, pelo lado da avó materna dele [D. Lourença].

Encontrei-me pela primeira vez com o Padre Américo, não sei em que ano, na Praça do Rossio, junto de umas floristas que ali tinham as suas mesas de negócio.

Estava concentrado e triste. Pela batina e pela capa enrolada ao peito de padre simples e de olhos que irradiavam bondade, vi logo que era ele. Cumprimentei-o com respeito e ficámos os dois a conversar. Disse-me ele, apontando para o chão: — Estava a pensar naquelas flores pisadas, restos de ramos vendidos, e naqueles três rapazinhos esfarrapados, com cara de vadios, a meter os braços na água suja do fontenário, à sombra da estátua de El-Rei D. Pedro IV, de controversa memória. É isto a vida!

Como estávamos perto da uma hora da tarde, convidei o Padre Américo para almoçar comigo no hotel de porta aberta para a Rua da Betesga.

Já que se prontificou a dar-me as sopas — disse-me, aceito-as de bom grado, até porque não me abunda o dinheiro para despesas pessoais. O meu diploma heráldico é o de Visconde da Bolsa Vazia. O que me vem, vai. Vai para a Obra da Rua que me dá muitas dores de cabeça, mas que me deixa grandes alegrias no coração. Não há como não ter nada, para tudo nos sobejar. Se isto não é verdade, o Evangelho é um mito. Mas eu acredito no Evangelho. Vamos adiante.

E lá fomos os dois, de braço dado, para a mesa que nos esperava.[…]».

Temos de ficar por aqui, com este encontro tão significativo em Lisboa, no qual é traçado um retrato simples e fiel de um Pai dos pobres. Do testemunho rico de Mons. Moreira das Neves, ainda há notícias para revelar de mais encontros…

Padre Manuel Mendes