PÃO DE VIDA
Em cada comunidade uma Conferência Vicentina
A propósito da celebração do 200.º aniversário do nascimento de Antoine-Frédéric Ozanam [1813-2013], em texto que recolhemos, o vicentino Manuel Carvas Guedes afirmou: «Só a promoção e a dignificação do homem, enquanto pessoa e membro de uma família nos impele sem demora, a todos nós Vicentinos do Porto e de Portugal; impele cada uma das nossas Conferências a que, como Ozanam, fazer da terra a nova humanidade e abraçar, com fé e com oração, as grandes causas de que os homens e a humanidade inteira precisam.» [Frédéric Ozanam — Esboço de Cronologia, Porto, 2019, p. 174].
Duas horas antes de findar o dia 7 de Agosto, Lisete Oliveira, presidente do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo, transmitiu esta notícia amarga aos vicentinos e amigos: «A Sociedade de São Vicente de Paulo está de luto. É com dor que vos comunico que nosso querido amigo Manuel Carvas Guedes, homem de luta e grande vicentino, acabou de partir para o Pai. Ficamos mais pobres, mas com a certeza que ele está em paz e velará por todos nós.». Depois, em 9 de Agosto, de manhã, foram celebradas exéquias na igreja do Cristo Rei, no Porto, dos Padres Dominicanos, presentes, e participada por familiares, padres vicentinos e diocesanos, muitos amigos e vicentinos, com a presidente do Conselho Superior de Portugal da SSVP, Fernanda Capitão. No final da Eucaristia, foi lida uma mensagem de D. Manuel Linda, Bispo do Porto. Manuel Fernando Carvas Guedes era oriundo de Murça, onde nasceu em 1 de Junho de 1950; e faleceu com 74 anos. Era o mais velho de 11 irmãos e a sua esposa Emília Manuela partiu antes, tendo deixado dois filhos e seis netos. Ofereceu-nos, em 2023, com muita estima e dedicatórias, dois livros de testemunhos vivos e de textos vicentinos da sua autoria: Manuel Carvas Guedes — Viver a amar, Porto 2012; e Vicentinos: pessoas que servem e que amam, Porto, 2022. Obrigado!
Entre outros serviços vicentinos — Conselho Central, Casa Ozanam (em S. João de Ver) … — alimentou um grande sonho vicentino, que procurou ir tornando realidade cristã: que cada Paróquia da Diocese do Porto tivesse uma Conferência de S. Vicente de Paulo — a Missão 477. Na sua despedida de Presidente do Conselho Central do Porto, em 2021, Carvas Guedes salientou que, em duas décadas, foram fundadas 83 Conferências vicentinas, revitalizadas 20, pelo que a Sociedade de S. Vicente de Paulo está presente em todas as Vigararias da Diocese do Porto, com 307 Conferências vicentinas [vd. Vicentinos…, p. 375].
Entre muitos encontros, que não cabem aqui, recordo bem o Dia Vicentino na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em 1989, com a presença do Bispo do Porto, D. Júlio Tavares Rebimbas e testemunhámos o seu empenho na reunião do Conselho Geral Internacional da Sociedade de S. Vicente de Paulo, na Casa Diocesana de Vilar, no Porto, de 11 a 16 de Junho de 2019. Esta reunião magna foi uma demonstração da vitalidade da SSVP, como movimento mundial de cristãos leigos, fundado em 1833 e presente em 138 países, agrupando mais de 800 mil católicos, organizados em 47 mil Conferências, na ajuda a cerca de 30 milhões de pessoas. Um dos fundadores da Sociedade de S. Vicente de Paulo, e destacado entre sete, foi Antoine-Frédéric Ozanam; que foi beatificado em 1997 pelo Papa João Paulo II, na Catedral de Notre Dame, em Paris.
Neste sonho vicentino de Carvas Guedes, inspirado por Frédéric Ozanam — de abraçar o mundo inteiro numa rede de caridade —encontramos e recordamos o Padre Américo, que muito enalteceu este grande movimento católico laical de serviço aos pobres, na sua vida de Recoveiro dos pobres, e foi clamando bem alto para que não houvesse freguesia sem Conferência vicentina. Ora vejamos o que escreveu em 1954 e com actualidade: […] Quero-me referir à ausência de Conferências Vicentinas nas paróquias de Portugal. Fossem elas, que já não era preciso dar tão largas caminhadas o Mendigo que a Comissão despede. Não era preciso. O Vicentino pode não falar em caridade, mas tem-na; tem-na dentro de si. Sem ela não seria. Por ela jamais se atreveria a dar um papel e fazer que o indigente vá recorrer a outros. Eu não conheço nada mais eficaz nem mais pronto do que estes exércitos desconhecidos a pôr a mão nas feridas do Desconhecido. Não é que o confrade distribua a cada um o suficiente, mas ajuda. Vai. Escuta. Interessa-se. Ama. Pelos sítios aonde andamos, fazemos sempre a pergunta a um caso novo que porventura se nos depara. Sim, vem cá todas as semanas o Senhor da Conferência. Não oiço sempre nem em todos os sítios. O número de pobres é esmagador e os confrades não. Mas oiço muitas vezes. Em grande número de famílias, o confrade é o primeiro auxílio.
Posto isto, mais conferências de S. Vicente de Paulo. Uma delas em cada freguesia. Todas por aí fora a trabalhar. Aliviemos o Pobre. As chagas. A Penúria. As situações. Os vícios — tudo. O Pobre acredita em quem lhe dá pão e está pronto a grandes sacrifícios por amor de quem lho der. Deste amor ao Amor de Deus, é um instante. É o caminho. Os sem pão não acreditam em Deus se primeiramente lho não dermos. Samaritanos. Muitos samaritanos. Haja deles nas paróquias, deles nos concelhos, nas cidades, nas nações, no mundo inteiro. O Samaritano é o homem que o próprio Jesus assinalou. No Seu alto conceito, as obras de misericórdia estão em primeiro lugar. Quem as não tiver feito, permanece na morte uma vida inteira.». ['Doutrina', in O Gaiato, N.º 270, 3 Julho 1954, p. 3-4].
Sendo a santidade um chamamento universal, de seguir Jesus e viver com Cristo, tendo o Samaritano como modelo, Padre Américo resumiu assim a Lei e os profetas, na vida de serviço aos pobres: «[…] Muitos profetas quiseram ver Jesus e morreram sem O ter visto. Nós somos mais do que esses profetas. Nós podemos ver Jesus. Nós podemos curar feridas, podemos dar pão, podemos vestir, podemos consolar; podemos ouvir a história dos trabalhos de Jesus e sofrer com Ele. Podemos sim senhor. Temos os Pobres no mundo!...» ['Pobres', in O Gaiato, N.º 160, 15 Abril 1950, p. 3].
Carvas Guedes — como vicentino simples de excelência, com amor à SSVP — percebeu bem qual é o Caminho da Vida, no serviço aos pobres e encontro com Cristo Ressuscitado, conforme escreveu: «Sentindo o alvoroço da ressurreição e a vida que dela deriva, os vicentinos procuram estar com todos e entre os pobres mais pobres, para que todos 'voltem' à vida e todos ressuscitem com o Senhor e para o Senhor.» [Vicentinos…, p. 163].
O Senhor Jesus veio chamá-lo em sofrimento e «[…] a servir as causas dos pobres, cujo dom recebeu de sua mãe e confirmou com Ozanam». [Viver a amar, p. 9]. Pedimos ao Pai celeste que viva em paz com Deus. E, ainda, pelas vocações de serviço aos pobres, bem como pela canonização do Beato Antoine-Frédéric Ozanam e pela beatificação do Venerável Padre Américo, como exemplos muito actuais no serviço aos pobres, nas comunidades, em que o lugar da Conferência vicentina — de amigos dos pobres — deve ser acarinhado, num tempo eclesial em que se fala tanto, na Igreja Católica, das dimensões sinodal e ministerial.
Padre Manuel Mendes