PÃO DE VIDA
Ruy Cinatti
Mas dizei uma só Palavra
Em sequência, é de continuar a esboçar alguns traços breves de Ruy Cinatti, pois uma palavra não basta. Na verdade, é um bom exercício — científico, poético e espiritual — abeirar-se do seu pensamento e acção. Vai sendo reconhecido o seu lugar bem merecido nas letras portuguesas, como poeta católico, sendo agrónomo e etnólogo. Da sua admiração por Padre Américo, é obrigatório apresentar um lindo poema, que será transcrito na íntegra e se encontra no seu vasto espólio [na Biblioteca Universitária João Paulo II — da U.C.P., Lx.ª], de nómada com muitas viagens feitas,que também foi encontrando Deus na Criação, e fez verdadeiro apostolado com a poesia.
Para tentarmos chegar ao desiderato proposto, ajudam mais algumas informações biográficas, tendo por base principalmente o seu Diário e algumas cartas. Assim, Ruy Cinatti foi baptizado a 10 de Abril de 1915, na igreja de St. Mary of Angels, em Londres, cerca de um mês depois de vir à luz. Foi muito grande a saudade da sua mãe, D. Hermínia, filha do Cônsul Geral português, que morreu em 2 de Abril de 1917, após uma intervenção cirúrgica. Depois, seu pai António Gomes foi para os Estados Unidos da América e deixou Ruy aos cuidados do avô Demétrio Cinatti, em Lisboa. Tendo morrido este avô, em 1921, foi entregue aos avós paternos, numa quinta [no Vale da Vaca] no Ribatejo. Em 1925, regressou seu pai, casado em segundas núpcias com Flora Stern [†1950] e tiveram uma filha, Amélia.
Em 1934, Ruy desentendeu-se com o seu pai, pois ingressou em Agronomia contra a vontade paterna; e passou a residir com a avó paterna. Recebeu formação religiosa, v.g., no Colégio Nun'Álvares, ao Lumiar — em Lisboa, onde foi aluno interno, de 1928 a 1931. Participava em actividades eclesiais do laicado católico, com alguns colegas amigos, como: a Juventude Universitária Católica [JUC]; e nos Jesuítas, sendo referência o Padre João Cabral, com quem se correspondeu. No seu Diário [Jan. de 1936], verifica-se que era membro activo das Conferências [Sociedade] de S. Vicente de Paulo, fundadas por Antoine-Frédéric Ozanam e mais seis companheiros. De facto, Ruy Cinatti ia procurando Deus na acção católica e na prática sacramental, como escreveu, a propósito de um retiro: «fui com o Constantino [Varella Cid] confessar-me. Fui despedir-me da Avó, tendo encontrado minha madrasta e irmã que troçaram. Vim. Aqui estou. Glória a Deus.» [Diário de 1936, 21 Fev.]. Com este amigo, foi a uma conferência e o relato tem interesse: «Depois de na rua do Arco do Carvalhão termos batido a duas portas, encontrámos o nosso destino. Numa barbearia, o P. Maurício falava com os operários, mas entraram cinco polícias que dissolveram o comício, por não terem conhecimento da licença. Fomos até ao pé da esquadra e em dez minutos tudo se resolveu. Voltámos para casa e eu pensei na miséria que há em Lisboa e nos navios que se estão a construir» [Diário de 1936, 10 Mar.]
A Fé católica ia-se tornando uma referência central da sua vida itinerante até ao seu passamento, conforme se foi comprovando nos seus escritos. Contudo, os sofrimentos familiares, na sua infância e juventude, levaram-no com emoção a lamentar-se de «nunca ter conhecido a felicidade de pertencer a uma família cristã e numerosa» [Diário de 1940, 13 Mar.]. Sobre outro retiro da JUC, confidenciou: «só num ambiente de silêncio tanto externo como interno as grandes resoluções e reformas dão direito a uma 'Palavra'» [Diário de 1940, 15 de Mar.]. Na verdade, na sua vida, escolheu como lema pessoal e ex-libris o pedido do centurião de Cafarnaum: «Sed tantum dic Verbo — Mas dizei uma só Palavra» [Mt 8, 8].
No que se refere à sua vida académica, importa notar e emendar o seguinte: Ruy Cinatti apresentou em 1950 a sua Tese de Licenciatura em Agronomia, intitulada Reconhecimento em Timor; e estudou Antropologia em Oxford, entre 1957 e 1960, fez trabalho de campo em Timor entre 1961 e 1962, mas nunca submeteu a sua Tese de Doutoramento, mesmo «quase pronta» [BJPII.03 — cx. 49], como escreveu. Apresentou, sim, em 1968, Um Cancioneiro para Timor.
Padre Manuel Mendes