PÃO DE VIDA

Ruy Cinatti

Mas dizei uma só Palavra

Continuando a indicar mais alguns traços do percurso de vida de Ruy Cinatti — poeta católico, agrónomo e etnólogo — desde 1974, os acontecimentos históricos precipitaram-se no Ultramar português com a descolonização e as independências das várias Colónias portuguesas, e iam deixando chagas profundas em Ruy Cinatti. Considerando que Timor era uma das referências centrais da sua vida, com o crescendo de violência, a problemática desse território foi-se transformando num pesadelo. Mais, em Outubro de 1976, morreu a sua irmã Amélia, de um tumor maligno, e vários objectos de valor foram-lhe roubados, pelo que ficou muito fragilizado. Ruy Cinatti tornou-se conhecido na baixa de Lisboa [v.g., Cais do Sodré], pela distribuição avulsa de poemas a amigos e desconhecidos. E trazia sempre ao peito uma cruz: «era a confissão pública da sua fé. Poucas cruzes terão entrado em sítios tão arriscados, mas o Ruy tinha uma dimensão a que poucos resistiam.» [Fr. Filipe Tojal, OFM — 'Florinhas no nosso tempo', in Paz e Alegria, Jan./Fev. 1987, p. 28-29].

No final de Setembro de 1977, partiu para a Inglaterra e a Escócia, onde reencontrou amigos, e visita a Universidade de Oxford. Regressa melhor; mas, em Lisboa, verificou que lhe tinham sido roubadas peças de arte. Em 1978, encontrava-se de baixa. Tendo emprestado a alguém, da Secretaria de Estado da Cultura, um milhar de negativos, entre os quais de S. Tomé e Príncipe, não lhe foram devolvidos. Quando morreu o seu amigo Jorge de Sena [†4-VI-1978], numa toalha de restaurante, anotou: «No dia da sua morte, transmitida telefonicamente por António Alçada Baptista, tinha comprado na Feira do Livro — Maio de 1978 — As Revelações da morte, de [Leão] Chestov, traduzido e prefaciado por Jorge de Sena. A coincidência assustou-o e ficou abatido. No Verão desse ano, esteve em Lisboa. Começou a pensar no seu Testamento e como gostaria de deixar tudo à Casa do Gaiato [Obra do Padre Américo], segundo carta a Mécia de Sena [18.9.1978]. De facto, fez um Testamento em 14 de Setembro de 1978 [e a versão definitiva foi redigida em 26 de Setembro de 1986]. Em Setembro, esteve de cama com febre e desejou sair de Lisboa: «Tenciono ir passar uns dias a Singeverga — beneditinos — e, se me aceitarem, na Cartuxa de Évora. Também pode acontecer que vá para Trás-os-Montes e vagabundeie ao Deus dará.» [ibid.]. Porém, o pedido feito à Cartuxa foi indeferido. Continuava com uma cruz ao peito, convivia com pessoas de vários grupos sociais e aproximava-se dos marginalizados. Distribuía poemas seus [policopiados] e a Oração de S. Francisco.

Por carta a Mécia de Sena [8.1.1981], confessou: «Sou muito sofredor à maneira do povo, tal como o Jorge adivinhou e escreveu, mas há momentos em que apetece dizer basta! Isto só em relação a pessoas e instituições; em relação a mim, sobretudo. […] De Timor… nem falar.». Em 1983, Ruy Cinatti tencionou visitar os E.U.A.; mas, no final de Março, explicou por carta a Mécia de Sena [31.3.1983] que desistia, por ter «de gastar um balúrdio com o telhado da casa de Sintra, em princípio de total ruína». No início de 1984, foi operado com anestesia geral; e, depois, escreveu numa carta: «Vou construir em Sintra uma capela em madeira inspirada em modelos timorenses.» [2.2.1984]. Com 70 anos, em 1985, reformou-se. No início de 1986, fez uma digressão transmontana. Na Páscoa, foi atacado por uma febre persistente, ficando combalido. Em Agosto desse ano, foi internado no Hospital de Santa Marta; e, em Setembro, recebeu a Unção dos Enfermos pelo Padre Peter Stilwell, e ficou nesse Hospital até que, no fim da tarde de 11 de Outubro, foi transferido, em estado crítico, para o Hospital da Cruz Vermelha. Faleceu no início do dia seguinte e foi sepultado a 13 de Outubro — dia ligado a Fátima — no cemitério britânico; em cujo talhão também foram sepultados: Flora Stern, António Gomes — pai, e Amélia Gomes — irmã. Ruy Cinatti veio a encontrar Nossa Senhora também como Mãe, como escreveu no seu Diário de 1940: «mãe dos homens e mãe dos órfãos, como eu que nunca soube o que era ter o carinho de uma Mãe». O Terço foi sua devoção predilecta.

No caminho da Cruz, cheio e sofrido, percorrido por Ruy Cinatti, do Oriente ao Ocidente, resultou uma obra escrita admirável, da Agronomia à Poesia, marcante na literatura portuguesa no século XX. Como poeta católico, é de assinalar que Padre Américo também teve o seu cantinho — numa dedicatória significativa de um poema muito belo. Eis:

LITANIA PARA DONA POBREZA

Para as Conferências de S. Vicente de Paulo e para as Casas do Gaiato, lembrando os seus fundadores, Frederico Ozanam e P.e Américo, santos franciscanos.

Quem ama os pobres tem lugar no céu.

Ninguém me leva da cabeça a ideia.

O sentimento tira-me o chapéu,

pula de gozo, dá-me uma tareia.

Eu caio tonto, não a rir se choro

ou se morro então, vivendo agora.

No princípio o Verbo, no princípio a Acção.

Minha a alegria que ultrapassa a hora.

Quem ama os pobres não teme a pobreza,

Nem a mão encobre quando entrega a esmola.

Contra a miséria, sim, luta e defende

de Francisco o reino, sua maior glória.

[duas versões: manuscrita e dactilografado — com a data 17/7/77.]

[Ruy Cinatti]

[Fonte: PT UCP/BUJPII — RCVMG/F/02/1441]

Padre Manuel Mendes