PÃO DE VIDA
85 Anos [1940-2025]
Casa do Gaiato de Miranda do Corvo - Coimbra
«Quis transplantar o pequeno habitante do Tugúrio em terreno adequado,
tendo o cuidado de sacudir o torrão na soleira da porta! Quis e fiz.
O amor é mais forte do que a morte. Comprei [3.10.1939] uma quinta para eles.
Chama-se a Casa de Repouso do Gaiato Pobre».
P. Américo! – Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 41.
A Obra da Rua celebra no dia sete de Janeiro, deste ano da graça de 2025, o 85.º aniversário da fundação da sua primeira Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, na Diocese de Coimbra, por Padre Américo, conforme escreveu: «A Casa do Gaiato já está habitada; os primeiros ocupantes deram entrada no dia 7 de Janeiro [de 1940], chuva a potes.» [Pão dos Pobres, II, Coimbra, 1942, p. 87]. Era dia litúrgico do Santíssimo Nome de Jesus, ficando a Obra da Rua assim consagrada. Justificam-se bem, nesta data festiva, algumas notas históricas dos primórdios desta já longa vida, sendo Obra da Igreja, conforme vontade do Fundador [idem, p. 247]. O grão de mostarda foi germinando e crescendo até se tornar uma árvore frondosa, onde muitos Pobres foram encontrando e encontram abrigo e ajuda, embora alguns ramos tenham deixado a seiva original.
Tendo [re] encontrado o Caminho da Luz em 1923 e ordenado Presbítero em 1929, em Coimbra, o serviço do Padre Américo aos Pobres, das ruas aos tugúrios, foi um itinerário cristão na Igreja de perseverança e evangelização para levantar os miseráveis, consolar os frágeis e despertar os adormecidos. Ao ser chamado por Deus e enviado pelo Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, para tratar dos Pobres – doentes, famintos, reclusos, garotos da rua… – os seus cuidados foram centrados em algumas urgências sociais, como a fome, as doenças e a marginalidade, dando corpo e alma a algumas respostas sociais, v.g.: Sopa dos Pobres [1932]; Colónias de Férias do Garoto da Baixa, em S. Pedro de Alva e Vila Nova do Ceira [1935-1939] - há 90 anos! E, ainda, Assistente religioso do Refúgio da Tutoria Central da Infância de Coimbra [1938]…
Padre Américo foi um pioneiro das Colónias de Campo para rapazes pobres, contando com a colaboração de estudantes do Seminário e da Universidade, mas confessou: «O garoto ateima que eu seja mãe e chama-me para tudo.» [Obra da Rua, p.38]. Não se ficou por aqui, em turnos de férias junto aos Rios Alva e Ceira, mas arriscou e empreendeu uma Obra nova: «Não! Arrumar, fechar, ir embora – estas palavras tinham de ser riscadas, e em lugar delas, armar tendas no campo, como Pedro quis fazer outrora no Tabor; pois que os pequeninos também gritavam à uma – é bom ficarmos aqui!» [idem, p.39]. Quando a II Guerra dilacerava o mundo, à sua maneira, o Padre Américo deu um sinal contrário e positivo ao movimento migratório do campo para a cidade, onde se encontravam periferias urbanas de populações que padeciam de condições mínimas de habitação, higiene e sanitárias, com outras misérias [v.g., na Conchada – Coimbra]: «O nível de vida da gente que mora nos aglomerados pobres, terra natal do ardina, mede graus abaixo de zero; e gela, no que diz respeito a costumes» [idem, p. 40].
De notar que, entre muitos momentos de proximidade aos Pobres, houve um encontro decisivo para o nascimento da Casa do Gaiato, quando um garoto pobre não o deixou descansar: «A Casa de Repouso do Gaiato Pobre nasceu em uma destas tardes do Outubro [1939] chuvoso, à luz de um candeeiro de petróleo, dentro de um cubículo da Baixa [de Coimbra] com traseiras para um saguão. O miúdo tinha deixado ontem a loja de onde fora despedido, por não poder trabalhar; na hora em que eu cheguei, vinha ele do Dispensário com duas caixas de injecções e recado de repousar em casa, alimentando-se bem!
O ambiente do quarto podia-se cortar à faca. No chão há farrapos dispersos e palha arrumada a um canto, onde dormem os irmãos; os Pais têm enxerga.
O pequeno doente é um dos Gaiatos das Colónias. É meu. Pregunta [sic] se ainda falta muito para irmos, e fala da sopa que lá se come e aqui não tem, com apetite e com saudades.
Nasceu assim a Casa de Repouso; lancei aqui a primeira pedra; começou naquela hora o meu fadário! […]» [P. Américo! – Pão dos Pobres, II, Coimbra, 1942, p.78].
Decidiu, então, iniciar uma vertente institucional na sua pedagogia social: «Acabaram-se as horas angustiosas de não poder remediar o garoto doente da mansarda, e de dizer que não, nas colónias, ao rapaz que me pedia para ficar mais tempo. Tinha uma casa para eles!» [Obra da Rua, p. 43].
Assim, para a recuperação e promoção dos garotos das ruas, o Padre Américo considerou como determinantes, entre outros aspectos: à maneira de Pestalozzi [1746†1827], o ambiente natural, no campo: «eu realizei eficazmente os meus desejos, que são justamente os do garoto da rua: – dar-lhes pão, sol, largueza, asas. Comprei uma casa para eles – descobri um novo mundo» [idem, p. 43-44]; e o modelo familiar: «A Obra deve girar nos moldes da família, enquanto o Miúdo lhe não poder ser restituído; e se este a não tiver, há-de sair do Ninho capaz de a constituir, pela prática que teve dela.» [idem, p. 47-48]. Surgiu logo uma evolução fonética e semântica, na boca dos pequenos gaiatos: «Em baixo, os três mais pequeninos, por não terem obrigação, colhem papoulas nos campos: – Pai Meco, olhe!» [Pão dos Pobres, 4.º vol., 1984, p. 24].
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Como prenda especial neste feliz 85.º aniversário da Casa do Gaiato de Coimbra, em Miranda do Corvo, é apresentada uma breve palestra de Pai Américo, proferida no Emissor Regional do Norte, em 12/11/[1944]. Foi recolhida de uma cópia autêntica, à nossa mão, transcrevendo o seu conteúdo gravado, como lembrança muito grata e para memória futura. Escutemos bem:
«A nossa Obra nasceu muito pequenina, como é costume das coisas grandes. Foi há cinco anos em Miranda do Corvo, a uns trinta quilómetros de Coimbra, que se instalaram em Casa própria os primeiros cinco vadiozitos.
Hoje, temos três Casas e somos mais de duzentos deles. A nossa especialidade é o Rapaz dos caminhos e das ruas. Muitos que nos batem à porta não sabem identificar-se. Não comeram nunca comida cozinhada ao lume. Vêm totalmente despidos de hábitos humanos. São de terras de ninguém. Passados meses, no gracioso à-vontade das nossas Casas e convívio salutar com os companheiros, começam eles a darem fé do seu valor, a terem estima por si mesmos, a distinguir o bem do mal, a acharem a sua própria consciência.
Todos os trabalhos de Casa – cozinha, refeitório, padaria, limpezas, amanho das terras, gados – tudo isto é obra das suas mãos: Obra deles, para eles, por eles – eis a nossa divisa. As vocações intelectuais aproveitam-se. Temos um Rapaz na Universidade de Coimbra, dois em Seminários, alguns em Escolas Secundárias. Eram todos da rua.
Nós somos hoje uma palavra nova que se levanta em Portugal. Que todos os portugueses se levantem também para nos escutarem melhor e ajudarem!».
Padre Manuel Mendes