PÃO DE VIDA 

Pai Américo e D. Domitilla de Carvalho

O percurso de vida de D. Domitilla de Carvalho [1871†1966] justifica uma breve nota biográfica [vd. Maria Margarida Mota da Cunha Rego de Carvalho — Domitila de Carvalho: Biografia de um percurso singular, Lx.: Universidade Aberta, 2004], como complemento da notícia de uma carta inédita referente a Padre Américo, anteriormente publicada. Indicamos apenas algumas linhas sobre esta notável mulher que marcou o seu tempo, em vários domínios, em Portugal. De seu nome completo Domitilla Hormizinda Miranda de Carvalho, nasceu em 10 de Abril de 1871, na freguesia de S. Martinho de Travanca, concelho da Feira — Aveiro, filha de Manuel Rodrigues de Carvalho, professor de instrução primária, natural de Requeixo — Aveiro, e de Margarida Rita Miranda, natural de Alquerubim — Albergaria-a-Velha. Foi baptizada em 7 de Maio de 1871, na terra natal [Arquivo Distrital de Aveiro — Nascimentos da Freguesia de Travanca: 1871 a 1883, Baptismo N.º 11, fl. 7]. Ficou órfã de pai com apenas um ano de idade. Fez estudos em Castelo Branco, Bragança e Leiria, terminando o ensino liceal em 1891.

Em Outubro de 1891, requereu e foi admitida na Universidade de Coimbra, mas devendo trajar sempre negro e com chapéu discreto. De facto, o Reitor da Universidade de Coimbra da época, Dr. António dos Santos Viegas [1890-1892], enviou um ofício ao Ministro da Instrução Pública e Belas Artes requerendo a permissão da sua matrícula e a dispensa do traje académico, argumentando: «Não encontro na legislação académica disposição alguma que obste à matrícula de alunos do sexo feminino, a não ser para a Faculdade de Teologia […] [vd. AUC — Arquivo da Universidade de Coimbra, Reitoria da Universidade: Correspondência — Ofícios (1890-1892), fls. 131 v. 132 v.; Joaquim Ferreira Gomes. — 'Domitila de Carvalho: A primeira mulher na Universidade de Coimbra', in Estudos para a História da Universidade de Coimbra, Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1991, p. 41-43; ]. Sendo aluna distinta em várias cadeiras e premiada, foi a primeira mulher portuguesa a licenciar-se e em três áreas: Matemática [1894], Filosofia [1895] e Medicina, em que se doutorou [1904]. Foi «uma mulher brilhante que, graças ao seu trabalho perseverante em estudos contínuos, conseguiu atingir o alto grau de sua educação em áreas de estudo tão difíceis, dando ao seu nome uma merecida reputação» [Revista O Ocidente, 1896, 19.º ano, vol. XIX, p. 203].

Foi médica e exerceu clínica na Assistência Nacional aos Tuberculosos, em Lisboa. Era católica e pertenceu aos Médicos Católicos Portugueses. No entanto, optou por ser professora de Matemática do primeiro Liceu feminino, pelo qual lutou, em Lisboa — D. Maria Pia, mais tarde Maria Amália Vaz de Carvalho, e de que foi Reitora [1906 — 1912]. Foi sócia da Academia das Ciências de Lisboa.

Era monárquica e amiga da Rainha D. Amélia de Orleães [madrinha de Doutoramento]. Em 11 de Abril de 1931, foi agraciada com o grau de Comendador da Ordem de Instrução Pública. Foi ainda uma das três primeiras deputadas escolhidas pela União Nacional, em 1934, para a I Legislatura da Assembleia Nacional, em que v.g. alertou para o seguinte: «A taxa de mortalidade infantil de 1930 a 1934 nos leva à conclusão de que neste país uma criança menor de cinco anos morre a cada doze minutos […].» [Diário das Sessões, n.º 17, 22 Fev. 1935, p. 342].

Publicou algumas obras, em especial de poesia, colaborou na imprensa periódica; e fez várias conferências. Sobre Coimbra, este inciso poético: «Em ti há sempre luz e riso e cor/Pois quando a sombra desce inda é maior/ Mais luminoso o sol da tua graça.» [Terra de amores, Coimbra, 1924, p. 72].

Temos à mão um poema original de sua autoria [2 p., ms.], que transcrevemos: «Excerto (Inédito) (1/ A noite vem caindo devagar/ Numa serena paz religiosa./ Linda noiva que passa reciosa/ Em vestes de luar… / A lua prateada/ Em varanda de nuvens debruçada/ Espreita curiosa,/ A dor imensa, a dor incompreendida/ Que se eleva da terra adormecida./ O rio a palpitar,/ Sob a carícia branda do luar,/ Agita docemente as suas águas,/ E vai cantando mágoas/ Sem nunca descançar…/ --- Dorme a terra sofredora,/ Resignada./ Dorme embalada/ Na graça antiga/ Da luz serena e protectôra/ Da luz amiga…/ (2/ E o rio a palpitar/ Sob a carícia branda do luar/ agita docemente as águas/ E vai cantando mágoas/ Sem nunca descançar…/ Domitilla de Carvalho».

D. Domitilla de Carvalho, foi uma mulher portuguesa precursora na vida universitária de Coimbra, no ensino e na actividade política, manifestando grande sensibilidade humana, científica, pedagógica e poética. Faleceu em 11 de Novembro de 1966, com 95 anos, na freguesia dos Prazeres, em Lisboa.

Padre Manuel Mendes