PATRIMÓNIO DOS POBRES
Há cerca de um mês, veio aqui um casal, ainda novo, pedir-me ajuda para aumentar a sua casa com um quarto e cobri-la de "telhas novas que há agora prensadas de alumínio por cima e por baixo e recheadas no meio de poliuretano que lhes dá capacidade de isolar o frio e o calor" pois a sua casa (?) estava tapada com chapas de fibrocimento e entrava lá muita água, muito calor no Verão e muito frio no Inverno.
Prometi visitá-los, já que isto se passava na Cidade, freguesia de São Sebastião.
Procurei o número da porta, no sítio indicado, mas eles não estavam.
Ao lado, numa barraca igual à destes, morava a mãe dele, uma senhora idosa, que sentada numa pedra lisa e baixa me foi falando com dificuldade porque é gravemente surda. Foi preciso berrar para ela ouvir. Vestida de preto revelou-me ser viúva de um homem que eu bem conhecia, mas com dificuldade de me ouvir não percebia o que eu procurava. Perguntou-me então quem era eu. Vestia uma roupita normal a qualquer pobre e calçava umas sandálias não exibindo qualquer sinal religioso.
A senhora conhecia-me mas já não se lembrava. - Sou o padre da Casa do Gaiato -, gritei-lhe em voz muito alta.
- Você é o padre fulano? - Dizia o meu nome.
- Sou -, respondi-lhe com a cabeça e a voz.
Levantou-se de repente, abriu os braços, apertou-me contra si e beijou-me demoradamente!
Que consolo meu Deus!? Ele há pobres que nos fazem sentir o grande Amor do Pai e a sua Presença viva no mundo. Surda, sem dentes, com sessenta e seis anos, dá-me surpreendentemente uma sensação do Sobrenatural.
Deus aparece-nos sem a gente pensar, através dos pobres e fortalece a nossa Fé.
As duas barracas têm a frente tapada por trepadeiras, árvores e flores. Uma figueira grande já com o fruto a amadurecer, romãzeira, tomateiro indiano alto com pomos pendurados e folhas largas, árvores silvestres, tudo sintomas de uma certa beleza humana daqueles corações.
Vi só a casa do filho. Era uma barraca comprida sem porta. Esta era substituída por uma placa de madeira prensada e grossa, já muito carcomida, o chão era térreo com alguns tapetes velhos a cobrir a areia e alguns bocados de cimento.
Entrei. Um fogão a gás, à direita, dizia-me que ali, era a cozinha; a seguir, vejo uma baixa parede de tijolo sem reboco e espreitei por cima o que escondia. Apercebi-me que tapava a cama dos pais. A seguir, ao fundo, outra abertura com uma cortina de pano sujo ocultava em parte o quarto (?) dos filhos sem qualquer janela.
Sem queda suficiente e sem cobertura bastante das telhas de lusalite, umas sobre as outras, a água entrava facilmente, caindo das emendas para o chão.
No jardim, frente a esta morada, havia gavetas de cómoda, a enxugar, e uma mesa de comerem, à sombra da figueira.
Não sei como aquela gente passou o Inverno. Não me admiro nada que o Vicente, marido da surda, tenha morrido tão cedo. A viver naquelas circunstâncias não se pode resistir por longos anos.
O casal tem dois rapazes, de nove e oito anos, e a mulher está grávida. A promiscuidade é inevitável. Daí que o homem sente necessidade de construir mais um quarto. Do que me apercebi, eles não têm nenhum quarto, nem nenhuma porta. Aquilo é uma barraca comprida onde se têm ajeitado para viver de qualquer maneira.
Como pegar na construção para a tornar habitável com alguma dignidade? Perguntei àquele anjo vestido de negro, se o terreno era deles. Que não. Que a Câmara lho tinha dado. É uma forma de falar. Naturalmente alguém da autarquia fechou os olhos e deixou-os lá permanecer.
A casa-de-banho é fora do conjunto. Mas aquilo é uma casa de banho?
Irei conversar com o casal. Irei orientá-los e dar-lhes o que for necessário para um mínimo de dignidade e conforto habitacional. A este anjo vestido de escuro, que me tornou presente o sobrenatural, com abraços e beijos abundantes, deixei o recado: - Eles que venham ter comigo
Padre Acílio