PATRIMÓNIO DOS POBRES

Nestes dias cortei a corda com que duas famílias se estavam a enforcar pela pobreza extrema. Não é muito forte a palavra enforcar pois a miséria estrangula-nos.

Uma viúva com dois filhos, um doente crónico e outro mais ou menos normal foi posta na rua e na rua, viveu com as crianças, quase um mês até que encontrou uma casa, me apresentou um contrato e eu lhe dei 600 € pra caução, um mês de renda e exigência de que não mais me voltar a bater à porta, por não ter onde viver com os seus.

- E a senhora é capaz de aguentar a casa? É capaz?

- Sou, sim senhor, vou trabalhar para umas estufas.

Nas estufas o pobre ganhará ordenado mínimo. Quanto fica para alimentar os filhos, os pôr na escola, farmácia, gás, luz e água?! Os pobres não têm mais nada senão seu corpo para trabalhar!

Outro caso: uma grávida a quem não renovaram o contrato numa engomadoria, por se encontrar nesse estado. Mulher de baixa estatura, com dois filhos normais e um autista, perde o seu trabalho quando mais precisava de ganhar! Oh desgraça!... Muito sofrem os pobres! Pessoas honestas, com sublimes sentimentos humanos, vivendo no meio desta selva, são autênticos heróis!

O que tem dominado mais o coração, é a Janete e os seis filhos de que tenho escrito. Agora, foi visitada pelos assistentes sociais. Vejo que o meu grito chegou alto! Mas não uma solução humana.

«Tanta criança junta numa casa só! Isto não pode ser.» Repetiram, segundo conta a pobre, uma série de vezes; e à infeliz inquilina da casa ameaçaram-na: «Que ela não podia assim acolher tanta gente. Estava sujeita, por lei, a perder a casa!»

Esta mãe de família ficou em pânico, com medo terrível que as senhoras lhe venham tirar os próprios filhos; ela que é uma extremosa mãe!... E tão sacrificada.

O Estado prende o marido por ele não pagar uma multa de 500€ e, agora, que a extrema pobreza chegou ao cume, não lhe dão uma casa como é de lei! O Estado é o primeiro a não cumprir a lei.

De rastos e dolorido fui conversar com a Câmara da Cidade e rogar se poderiam romper os montes dos dois mil pedidos de casa que lhe chegam, segundo as palavras da Senhora Presidente, e dar uma à Janete. «Que não temos casas». Mais, não compete às Câmaras construir bairros, mas, sim, ao Governo. E num desabafo também dolorido a Senhora respondeu-me: - Esta cidade está cheia de bairros sociais enquanto os municípios vizinhos e limítrofes não têm nem um! Depois, quanto mais bairros, mais problemas sociais!

Eu não sabia que compete ao Governo providenciar para que cada família, segundo as suas possibilidades, tivesse uma casa. Não sabia! Tive agora conhecimento pela boca de quem dirige o Município de Setúbal.

Sim, é verdade. Muito se tem feito nesta cidade, no campo da habitação. A senhora Presidente mostrou-se indignada com a indiferença dos outros municípios.

Meu Deus! Há dinheiro para tudo, menos para os pobres. Resolvem-se problemas económicos tão pesados, mas os pobres ficam excluídos! Faz-se uma cidade do futebol e, ao mesmo tempo, permite-se que as famílias se amontoem para viver, agravando progressivamente as dificuldades sociais. Que desequilíbrio - e no meio de tanto silêncio!

O pobre marido da Janete está preso por defraudar o Estado em 500€! Outros que roubaram ao erário público quinhentos milhões ou mais, segundo a comunicação social, passeiam-se gozando a vida como pessoas impolutas! Oh! justiça dos homens!... Oh! pobreza dos pequeninos!... Oh! ironia dos responsáveis.

Padre Acílio