PATRIMÓNIO DOS POBRES

O Património não pode calar a injustiça distributiva dos bens neste e noutros países, particularmente os fundamentais, como a habitação, o alimento e a saúde. Os três estão bem relacionados uns com os outros.

Não há saúde sem habitação digna e acessível, e a alimentação é fundamental também para um equilíbrio saudável. Penso que esta linguagem é fácil de compreender.

Nem vale muito um bom sistema de saúde, se não for correspondido com uma habitação razoável e um alimento adequado.

A crise residencial devia ser a primeira das preocupações de qualquer governo e até mesmo das autarquias.

Não sei se é para levar a sério a referida preocupação da Câmara Municipal de Setúbal de levar para a frente um programa capaz de dar a cada família setubalense uma casa condigna com o apoio do PRR.

Se é possível ir buscar apoios a qualquer lado, é um dever fazê-lo, com todo o empenho, pois nesta matéria estamos a estoirar por todos os lados sem deslumbrar soluções.

Uma mulher ainda nova, apareceu-me a chorar desesperadamente que a iriam pôr na rua, se não pagasse dois meses de renda da sua habitação. Estava desempregada com dois filhos, um de cinco anos e outro de um ano, abandonada pelos dois progenitores, um de cada relação.

Olhei para ela e a suas lágrimas pareceram-me as da mulher adúltera de que fala o evangelho e que o mundo corre à pedrada. - Como é que você vai embarcar assim com homens já com a dolorosa experiência do primeiro? Estas pessoas o que procuram é o prazer da carne, e cada vez com mais frequência, por sentirem que estão ilibados de qualquer crime, se abandonarem o fruto das suas entranhas.

Gente dessa há por aí aos montes e ninguém lhes vai pedir contas!... Ninguém!! Nem o Estado com as suas leis e os seus tribunais, nem a opinião pública!... Toda a gente acha normal que o homem reproduza filhos sem assumir responsabilidades e sem que ninguém lhas peça!...

Não é crime nenhum abandonar os filhos e a própria mulher! Não senhor, não é crime!! Mas... ai da mãe que proceda desta forma, cai-lhe em cima o carmo e a trindade, vem a televisão e os seus comentadores e toda a gente se atira à mãe que abandona os filhos!...

Pode amanhã, quero dizer, daqui a quatro ou cinco meses, o Estado, pelos tribunais, vir obrigar o progenitor a contribuir com uma pequena quantia de dinheiro, para as despesas elementares do seu descendente, mas pouco mais. Os meus ouvidos pecadores escutam as histórias mais pungentes e secretas do mundo empobrecido.

Enquanto a mãe sentada no meu carro que me foi oferecido, preenchia o impresso a dizer quanto iria receber, o número do cheque e para que se destinava a esmola, passou-me o menino para o meu colo, ele tentava agarrar-se ao volante do carro muito contente sentado nos meus joelhos.

Agarrou-se-me ao nariz e os óculos foram para o chão numa inocente e feliz irrequietude. Enquanto o acarinhava e me aprazia, tive uma inesperada e doce inspiração: era o Menino Jesus que eu tinha comigo. Sim, pobre! Sim, pobre! Sem pai! A passar fome!

A mãe havia-se queixado num mar de lágrimas, que se vira obrigada a comprar leite de pacote para o alimentar.

Pobre, mais pobre que o próprio Menino Jesus. Ele foi aconchegado por Nossa Senhora e protegido pelo afecto paternal de São José, com o pai e a mãe a ampará-lo. Meu pobre Menino Jesus, muito mais desprezado que naquele tempo. Deu-me ganas de o apertar no meu peito, nunca mais o largar e padecer com ele o seu destino!

A criança galreava de contente no meu colo e o meu coração entristecia-se de o ver tão desamparado.

A mãe, alheia aos meus sentimentos, sentada no carro ao meu lado, preenchia uma papeleta que me havia de testemunhar a quantia que lhe iria oferecer, para o alívio da pressão que sobre ela faz a renda da casa.

Sozinha, sem trabalho, com duas crianças paternalmente abandonadas, como se havia de ver?!...

Casualmente fui a casa de um dos meus rapazes e encontrei-o deliciado a dar a papa ao seu terceiro filho, de seis meses. O menino com esta idade está maior e mais forte do que o meu Jesus abandonado.

Se eu me tivesse recolhido ao nosso Calvário, ter-me-ia libertado de todas estas dores, e não andaria agora, carregado com as cruzes com que a pobreza extrema me assombra diariamente.

Perante os grandes deste mundo, que querem viver numa liberdade sexual sem freios, o abandono paternal não é crime. É uma coisa que se remediará mais tarde por uma sentença judicial. O que fica pelo meio, é sempre responsabilidade da mãe.

Quando lhe dei o cheque ela suspirou em agradecimentos, mas eu pedi que os dirigisse a Deus que é o Pai dos pobres, vinha em sua ajuda por amor dela e dos seus meninos.

Após esta, vieram mais cinco, todas com o mesmo problema: a renda da casa!

É pena que quem governa tenha tudo assegurado, nunca mais adquire capacidade para sofrer estes problemas e muito menos entender esta linguagem repleta de dores.

Padre Acílio