PATRIMÓNIO DOS POBRES

Ainda que mergulhado no abismo da pobreza material, encontro sempre surpresas assustadoras e difíceis de resolver.

Agora que não vivo na Casa do Gaiato de Setúbal, e totalmente entregue aos pobres, tenho oportunidade de ver, nos meios de Comunicação Social, a que nunca tive acesso, por falta de tempo, como eles falam da carestia de vida que se resume nas suas expressões, à alimentação e à morada de cada família, como se os pobres, não tivessem como todo o ser humano, outras necessidades, também urgentes.

As doenças, as deficiências, os cuidados com a boca, com os olhos e outras carências próprias da fragilidade humana.

O caso daquela abandonada de 40 anos que passou comigo pela frente de um grande edifício de referência, para ambos, e ela não deu por ele, por deficiência visual e a quem paguei uns óculos por 1480,00€, é bem paradigmático. Ninguém a ajudava com nada, apesar da sua cegueira. A alegria dela, ao recuperar a visão normal, extravasava por todos os poros do seu frágil ser. Para mim foi um júbilo indiscritível e um sabor reconfortante daquela boa obra. Agora já sonha em fazer um curso que a apte a ganhar mais na vida, para poder suportar melhor as pesadas despesas da casa, e da alimentação dela e dos dois filhos, pois também se encontra em estado de abandono conjugal.

Perante o entusiasmo desta pobre, comecei por lhe aconselhar diversos degraus a subir: primeiro os óculos, a seguir a renda da casa, depois arranjar uma morada mais barata, sem se meter na internet, nem nas imobiliárias. A pouco e pouco irá fazer o tal curso, se as capacidades do Património o permitirem.

Aquela menina de 20 anos criada pela avó, sem pais, já com o 12º ano, quando a avó faleceu, junta-se com o namorado. Emprega-se no hipermercado, onde o seu amor, vai fazer poucas vergonhas, provocando a sua exoneração, após expirado o acordo concluído. Posta na rua, por estas razões, manda-o passear e fica sozinha na casa da avó, sem capacidade nenhuma para suportar toda as despesas. Aparece-me a pedir dinheiro, para pagar as rendas atrasadas, desaurida , a meter dó! Não tendo mais familiares, o primeiro impulso que tive foi trazê-la para a minha casa, onde vive comigo a dona Conceição, até arranjar trabalho e pô-la a estudar no próximo ano lectivo, mas apenas respondi: — não tenho dinheiro para a renda da sua casa. Perdi-a de vista, sem ter ficado ao menos com o seu contacto, arrastado pela impossibilidade de a ajudar naquele momento.

No meu diálogo com ela, perguntei-lhe se não tinha ido à catequese, nem feito a primeira comunhão: — a minha avó não era dessas coisas! Sem Deus, todos nós ficamos entregues aos instintos da nossa natureza e daí, esta desgraça. Pareceu-me uma menina simples, com alguma dignidade, mas imatura.

E aquela abandonada que há acerca de meses recorreu ao tribunal, a exigir a contribuição do pai dos filhos, que fugiu sem dar nada, para o sustento e educação deles.

Sem tribunal a funcionar, tudo para. A Segurança Social não mexe e tudo o resto é indiferença. Tem sido o Património a pagar a renda, a água, a luz e o gás e a dar-lhe algo mais, para as suas doenças e dos filhos.

E aquela obesa, que não me canso de ajudar para os remédios, a comida dela e dos filhos, rendas da casa e agora, pediu-me 350,00€ para fazer um curso de tratamento de beleza das unhas das senhoras, como único meio possível, para poder ganhar, o seu sustento, a renda da casa e o pagamento de inúmeras dívidas, a várias entidades, algumas das quais levam um juro pesadíssimo a pobres que caem no isco como os peixes.

Chamo abismo à pobreza, porque só quem se mete pelo fundo abaixo, percebe o sofrimento e a inquietação de quem cai. Assim a situação humana dos pobres, tem vários graus, até chegar ao extremo que é não ter casa e de ter filhos e não arranjar trabalho.

Quanto mais degradados, mais visível é para mim a Presença do Divino. Aquela desamparada que ao fechar da noite, se põe a pedir com um filho pela mão, dinheiro para pagar um quarto, onde possa dormir, é bem o retrato do abismo.

Padre Acílio