PATRIMÓNIO DOS POBRES
O ritual marcava o Evangelho das bem-aventuranças. No meu tempo de catequese aprendíamo-las de cor, e ainda me recordo de as repetir no meu exame para a comunhão solene. Todos os Cristãos as sabem, e muito mais os sacerdotes, mas elas são difíceis de praticar, por isso, lê-las, repeti-las e comentá-las muitas vezes, é uma necessidade vital para a Fé Cristã.
O corpo da irmã por quem rezávamos, fora macerado ao longo do tempo com a doença do marido e o seu próprio, e arrastado, sofrimento.
Quando outros velarem por nós em oração, que nos encontraremos sem vida na nossa urna, como gostaríamos de ter praticado continuamente as bem-aventuranças.
Jesus proclama felizes os que têm espírito de pobre, porque deles é o Reino dos Céus e declara bem-aventurados os humildes.
Aquele pobre de que já falei várias vezes, voltou, de novo, à nossa porta, com renovada proposta para cobrir a sua barraquinha.
Não aceitou o meu alvitre para a tapar de plástico. Preferiu comprar um encerado, o qual, segundo ele, era mais maleável, forte e não se furaria tão facilmente como o plástico. Falou-me de uma empresa com quem, em tempos, se relacionou e combinara agora o preço. Passei-lhe um cheque endossado à sociedade e fiquei tranquilo à espera de o visitar e ver o encerado amarelo cobrindo a precária habitação.
Nada. Nada aconteceu.
Uma destas manhãs orvalhadas, o homenzinho esperava-me à porta da cozinha para me falar, curvado, com a barriga colada às costas, os olhos remelados, um chapéu fundo a cobrir-lhe os raros e brancos cabelos faziam uma figura que metia dó.
— Então?! Logo de manhã?
— Olhe, senhor prior - e tirou o chapéu que agasalhava a cabeça, estendeu-me a mão arqueada e suja e tentou beijar a minha, o que eu não consenti, sentindo que quem devia beijar a mão dele, era eu. - Trago-lhe aqui o cheque. Aquilo são uns aldrabões. Queriam-me vender uma coisa que não prestava para nada e eu não me meto com gente daquela.
Passava-me então o envelope que eu lhe fechei com o agrafador fitando-me nos meus olhos:
— Veja senhor prior. Abra o envelope que eu sou um homem sério.
Encantou-me o gesto do pobrezinho. Uma réstia de céu entra-me na alma e o consolo provocado é indiscritível.
— Oh! homem, eu sei bem isso! Eu confio em si.
— Mas abra lá e verifique.
Tive mesmo de rasgar o envelope pela ponta agrafada a segurar o cheque e tirá-lo à sua frente.
Disse Santa Teresa que a humildade é verdade. Eu estava perante ambas as virtudes.
A humildade e a verdade, incarnadas naquela figura mal cheirosa e mal vestida, mas sublime!
Já que não comprava o encerado podia ter negociado com a empresa de aldrabões a troca do cheque de 800€ por menos 50 ou 100€, metê-los ao bolso, comprar fraldas para a mãe dos seus filhos, que ele tanto ama, e para a máquina de lavar roupa que eu lhe dera e está estragada. Podia ter arranjado muitas formas de ficar com o dinheiro, mas não foi nisso. A pureza do seu coração impediu-o e eu gozei uma graça inaudita.
Ele é um pobre com espírito de pobre e um humilde cuja virtude se sente ao aproximarmo-nos dele!
Como vale a pena andar por estes caminhos! Como Deus Se torna presente!.. Como as Verdades Eternas se nos apresentam com tanta evidência!...
Felizes os pobres, felizes os humildes! Quem me dera possuir tais virtudes de forma que elas se tornassem palpáveis aos meus irmãos, como este homem mas transmitiu a mim!
Quer agora que eu lhe cubra a mansarda com chapa de zinco. De zinco não. De sanduíche que são mais confortáveis e mais limpas. Nem que eu as amarre ao chão para que o vento as não leve.
Padre Acílio