PATRIMÓNIO DOS POBRES
Passou por mim uma cena evangélica que me abalou de tal maneira que não a posso ocultar aos meus amigos.
Há longos anos que protegemos esta mulher e os seus filhos, mas há muito tempo que deixei de a ver e comecei a detestá-la por me dizerem que ela abandonara os filhos e os deixara à sorte.
Nestes dias, voltou a nossa Casa em busca de amparo, que eu lhe neguei com os mesmos sentimentos do fariseu Simão. Trazia uma receita para ser aviada e um papel do Tribunal que me neguei a ler. Deixei-a e fui à cidade aviar os medicamentos pedidos e informar-me, sem ela saber, da história completa dos últimos anos, a qual não me pareceu firme, mas me fixou ainda mais no meu propósito de aparente desprezo.
Entretanto, a D. Conceição ouviu-a, doeu-se e confirmou-me que ela não tinha abandonado os frutos do seu ventre. Começou a recordar-me das vezes que ela, espancada pelo companheiro, aqui tinha aparecido, cheia de nódoas negras, a pedir socorro.
Voltou vários dias, como náufrago que no meio do oceano não encontra outra bóia a que se agarrar, senão esta. Roupa, calçado, alimentos e um dinheirito que a Senhora lhe deu.
A pouco-e-pouco fui vencendo a repelência e os meus sentimentos modificaram-se, tornando o meu coração mais afável.
Cruzei-me com ela quando me dirigia a Lisboa, na nossa carrinha, e ela vinha a pé, na estrada da estação palmelense. Aquela figura, de frente, após uma curva, pareceu-me a tal senhora. Então, verifiquei pelo espelho retrovisor do veículo e confirmei: ia a pé à minha procura.
Lisboa é um mundo! A carrinha carregava tângeras para um hotel, que mas paga ao preço da chuva, e aproveitava para ir buscar dois electrodomésticos e roupa à casa de uma assinante, para dar aos pobres, mas aquela cara revolucionou todo o meu sentir.
Que irá fazer? Ela anda perdida! Que faria o Senhor neste caso? Eu não lhe tinha permitido que me tocasse.
Foi uma viagem em silêncio com o Bita ao meu lado, mas um barulho tremendo dentro de mim!... A misericórdia de Deus!... E eu?...
Quando regressei, ainda sem almoço, encontro-a sentada nos degraus de pedra, aquecida pelo sol. Deu-me no coração um baque: — ainda tenho oportunidade para corrigir a minha atitude.
A primeira coisa que fiz foi perguntar à Senhora da Casa se lhe tinha dado comer. Que sim. Que comera uma sopa! Fiquei aliviado e propus-me ouvi-la a seguir à minha refeição.
Ele há vidas terrivelmente massacradas!... Não sabe ler... e é uma pessoa inteligente. A mãe morreu quando ela tinha um ano. O pai arranjou-lhe uma madrasta que nunca a mandou à escola. O pai casou-a aos treze anos com um homem de vinte que a fez sua escrava. Naquela situação, gerou uma filha nascida tetraplégica e mais três ou quatro filhos. O parceiro batia-lhe muito e ela fugiu de casa com outro e os filhos mais pequenos.
Naquelas andanças o homem foi preso, e ela também.
Apareceu-me agora com um despacho do Supremo a mandá-la libertar imediatamente. Diz-me que está inocente e não fez mal nenhum, que se fartou de sofrer durante dois anos e dois meses. Nos primeiros quinze dias esteve numa cela, sem ver o sol, com camaradas muito agressivas. Que foi horrível!... Depois... Tanto tempo sem ver os filhos.
Nunca ninguém a visitou, nunca... nunca... e nestes nuncas rebentou em choro e lágrimas!... Nessa altura, lembrei-me da cena evangélica de Jesus com Madalena. Não chorei por vergonha e segurança, mas o choro chegou ao fundo de mim próprio.
Que está a viver com uma pastora negra. Sim, alguma mulher cismática que também nos dá lições de vida! Foi ela que me acolheu mesmo sem poder.
Que quer trabalhar! Que quer ir à escola! Que se quer libertar daquele monstro que a dominou e lhe fez os filhos! Que não pode viver sem eles, que há-de ir ao Tribunal requerer os seus direitos de mãe. Quer alugar uma casa, se eu a puder ajudar. Que deseja reconstruir a sua vida!
Ela é uma ave sem ninho a sonhar com as exigências naturais do seu estado.
Peguei-lhe no mandado do Tribunal, copiei-o e fui ter com um advogado, de coração e cabeça, para que veja o seu processo, verifique se está inocente e, no último caso, exigir uma indemnização ao Estado. Quem me dera!
Mesmo assim, dei-lhe confiança: que pode alugar uma casa, lhe pagarei a caução e o primeiro mês, lhe darei os electrodomésticos e mobílias e a ajudarei quanto puder.
Depois de a ver recuperada, dir-lhe-ei: — Vai em paz e não tornes a pecar. Procura o caminho do Senhor!
Padre Acílio