PATRIMÓNIO DOS POBRES
Foi à saída da missa.
Transpondo a porta da capela, a mulher pôs-se à minha frente como quem me domina. Não se enganava!
Estes momentos são vividos de tal forma que o Espírito nos arrebata e os pobres falam mais alto interpelando-me.
O seu aspeto impressionou-me. Era um rosto amarelo, sofrido e apanhado de tal angústia que se me comunicava. Vestia muito pobremente e trazia numa velha carteira de mão, um conjunto de papéis que começou a desdobrar, acompanhando os gestos com lamentos, "Eu só quero que me pague as rendas da casa" e exibiu o papel da câmara, "Com o resto não o quero aborrecer." A renda é diminuta, apenas pedagógica, não chegava a nove euros por mês, a qual ela deixou acumular e atingia agora duzentos e um euros, quantia insuportável para os seus rendimentos que em primeiro lugar é o pão para a boca.
O resto com que não me queria aborrecer, era mais doloroso: guias de tratamento, medicação que ela deveria tomar diariamente, por causa de uma leucemia aguda que a dominava e lhe transmitia aquele ar de prostração e atirava com ela para o hospital, longos dias. A data das receitas (agora guias) eram do início de Fevereiro e já passávamos do meio do mês sem serem aviadas.
A leucemia é uma doença que se combate com uma alimentação rica em ferro, como beterraba, agriões, várias hortaliças, carne e peixe abundante. Alimento que não está ao seu alcance.
Senti-me atento à sua penúria e pronto a pagar a medicação, comprar-lhe alguma carne enquanto ela se alargava nos seus queixumes. A sua casa tem as janelas sem vidros e os seus netos passam fome.
- Que faz o pai deles?
- Eles não têm pai! Essa agora...?
- Como podem não ter pai?
- Têm mas ele não quer saber.
- E a sua filha não trabalha?
- Ela tem um bebé pequenino que é filho de um preto.
- Ela nunca trabalhou?
- Não tem trabalho.
- Porquê?
- Ela só fez a terceira-classe, nunca teve cabeça.
Três crianças sem pai, uma filha diminuída e a mãe com uma doença terrível, eis a carga desta pobre. Passei por sua casa, não entrei. Ao ver a filha com o bebezinho ao colo mais os outros dois pequenos desfaleci. Só lhe perguntei se tinha alguém que desmontasse as grades de alumínio das janelas para as levar à vidreira, afim de lhe colocar os vidros e as devolver capazes de resguardar do frio.
A quem atribuir culpas desta tragédia viva? Quem aguenta esta família é a doente, só ela tem cabeça na sua dolorosa expressão. Deve correr todos os cantos da cidade onde se dá algum alimento aos pobres.
Como as Conferências Vicentinas teriam aqui lugar...! Como os poucos cristãos desta cidade encontrariam o seu Jesus Crucificado e Sofredor e com Ele se configurariam na comunhão com o desprezo, fazendo-lhes visitas frequentes para os amparar, proteger e alimentar!
Como os Serviços Sociais do Estado se deveriam debruçar a sério, sobre famílias como esta a fim de evitar uma escalada de miséria humana sem fim à vista, fazendo-lhes visitas frequentes para os amparar, alimentar, obrigando os progenitores a assumir as suas responsabilidades e exigir-lhes trabalho. O Estado tem força para isso. É seu dever.
A Igreja pode persuadir, mas pouco mais. O ambiente doméstico teria de ser educativo, a escola das crianças obrigatória, segura e amparada.
O alheamento destas vítimas da miséria deveria perseguir os cristãos!
Como os descrentes se admirariam ao verem os cristãos a prostergarem-se nos caídos da sociedade e a gritarem por Justiça.
O Concilio Vaticano II trouxe à Igreja Católica uma profunda renovação litúrgica e o Papa Francisco tenta, a todo o custo, pedir-lhe também uma renovação caritativa. É que segundo Jesus Cristo e o seu Evangelho, o Amor a Deus e ao Amor ao próximo não se podem desligar.
A Igreja fundando obras sociais ligadas ao Estado perde a ocasião de celebrar a caridade cristã e atualizá-la nas suas celebrações. Parece ainda, ter criado um medo terrível de perder este encosto, por forma que, tendo assumido esta enorme responsabilidade social, financeira e económica como se fossem empresas, se lhes faltar esta colaboração seria o colapso. E vejo aí a fonte do mutismo sobre tantas injustiças que afligem toda a gente neste País.
A colaboração leva a uma vivência sem atritos, sem denúncia das injustiças e num silêncio comprometedor.
A Igreja católica tem hoje um Papa que só se verga à verdade, ao Amor aos mais desprotegidos e a todo o sofrimento humano. Ergue-se no meio dos líderes cristãos como um exemplo a seguir.
Padre Acílio