PATRIMÓNIO DOS POBRES
O Património de hoje revela dois olhares da pobreza e da miséria humana.
O primeiro como entrei no submundo desconhecido da prostituição e o segundo como continuo a actuar perante o sofrimento que vou descobrindo e me aparece.
Foi pelo telefone, uma voz muito dorida a pedir-me auxílio. Eu não sabia de quem se tratava. Ainda a mandei ter com o pároco, mais para me livrar do que para agir, pois sei que ele não liga nada aos pobres. Entretanto a voz falou-me de um nome! Era o de uma enfermeira de saúde pública com quem trabalhei mais de trinta anos no apoio a umas setenta prostitutas da cidade. Destas recuperamos apenas três que constituíram família.
Ela recebia-as no seu gabinete, tratava-as das doenças contraídas na sua actividade, tornou-se confidente de quase todas.
Nesta actuação conheci bem a enfermeira, o seu trabalho e a sua dor. E ganhei-lhe um especial apreço e afeição. Era uma mulher corpulenta quase obesa, mas com um grande coração. Parecia-me que se transformava em mãe daquelas mulheres e com elas sofria a sua desdita e a permanente adolescência.
Conhecia a história de cada uma, como nasceu, onde cresceu, e aonde foi a sua educação... e como caiu naquela desgraça.
Muitas não eram naturais de Setúbal, vinham de outras cidades para se esconderem. Hoje este problema não aflige ninguém, é um mundo negro.
A referida enfermeira reformou-se e está agora muito doente, num hospital de Lisboa, sem esperanças de regressar curada a sua casa.
A enfermeira soube da minha acção com os pobres e recorria a mim, pedindo ajuda material e apoio espiritual. O seu gabinete era o meu confessionário. Ali tomei conhecimento das tragédias de vida mais dolorosas e mais violentas que nunca imaginei existir.
Ali aprofundei o conhecimento da miséria humana e comecei a apreciar melhor a entrega de Jesus por nós. O valor do arrependimento e aquelas palavras do Evangelho aos Fariseus daquele tempo e de todos os tempos. Pela emenda de vida os Publicanos e as prostitutas entrarão no Reino dos Céus e vós sereis postos fora.
Esta não podia confirmar a verdade daquela voz - Então alguém que possa ser próxima dela - alvitrei. Aparece depois uma nora da referida enfermeira a falar do telefonema e a dizer-me de quem era a voz transtornada que me implorava ajuda: uma senhora angolana há muitos anos a viver em Portugal fora companheira e empregada da sua sogra.
Foi uma ligação que me prendeu como a qualquer mortal. - Que venha ter comigo às 17h30 ao Carmo, onde celebro todos os sábados às 16h00.
A senhora veio à Santa Missa e sem nosso conhecimento, uma outra pobre chegou também à espera de ser ajudada.
A angolana saiu da igreja com as pessoas e esperava-me lá fora, a outra pelo contrário, entrou pela sacristia adentro como se estivesse em sua casa!
Reconheci-a. Já lhe tinha pago o quarto muitas vezes, e mandado à Segurança Social e ela já me tinha jurado que era a última vez que me chateava. - Mas não era a senhora que eu espero!? A si já ajudei e agora não posso mais!
Pedi que me fossem chamar a angolana que lá fora, humildemente aguardava a minha saída.
Era uma pessoa alta, negra, vestido da mesma cor com um lenço pela cabeça, escondendo o rosto sofrido. Fora operada à barriga e a cirurgia não correu bem. Tem de ser novamente submetida ao bloco operatório. Entrou na sacristia parecendo falar com o soalho. Não levantava a cabeça, não me olhava, só gemia com dores. - Então diga lá o que me quer!? Ela tirou da sua maleta de mão velha, uma carta manuscrita do senhorio e entregou-ma para ler, enquanto carpia dores do seu estado e da sua solidão.
A carta falava da renda de casa que incluía água e luz no valor de 550€ por mês. Devia três meses. Perdera o trabalho. Estava muito doente. Tinha de ser novamente internada e sentia-se perdida neste mundo com as ameaças do senhorio a querer pô-la na rua.
Quando lhe passei o cheque de 1100€ , a outra percebeu e fez um escabeche comigo pela igreja abaixo, que eu não era justo, só atende pretas e que à outra dera um cheque com tanto dinheiro!...
A Pobre negra, continuava o choro da sua vida, da sua doença e medo do senhorio que a pusesse na rua. Recomendei que se dirigisse à Segurança Social e expusesse a sua situação, fosse persistente em pedir, não desarmasse, chorasse!
A resolução destas situações depende muito das pessoas que as atende. É mais fácil dizer que não do que verificar a possibilidade legal de uma colaboração do Estado.
Padre Acílio