Súmula Biográfica do Padre Américo
Também gostava de ser assim um livro aberto [...] só com duas folhas;
uma em branco, aonde Deus escreve; outra escrita, aonde o povo lê.
Frei Junípero
(Padre Américo)
O Servo de Deus Padre Américo, conhecido por Pai Américo, é uma figura cimeira da Igreja em Portugal no século XX. Entre outras facetas, foi um grande educador português, gigante da caridade, místico do nosso tempo, artista da pala-vra e precursor do II Concílio do Vaticano.
A vocação é a história de um inefável diálogo entre Deus e o homem, entre o amor de Deus que chama e a liberdade do homem que no amor responde a Deus. Toda a pessoa humana é uma vocação. Assim aconteceu com Américo Monteiro de Aguiar (AMA): A vocação é um selo que Deus põe na alma da gente, ao nascer.
O Ameriquinho do Bairro
Encontra-se o berço de Américo na Paróquia de Galegos (Penafiel), sob a invocação do Salvador, da Diocese do Porto, onde residia e trabalhava uma benquista família católica de lavradores, da secular Casa do Bairro, onde nasceu em 23 de Outubro de 1887. Foi torrão de evangelização monástica, dos filhos do Patriarca S. Bento; e que, no século XIX, prestava culto especial à Eucaristia e ao Coração de Jesus, e à lareira rogava a intercessão da Mãe de Jesus. Na sua vocação à santidade, que é comum a todo o ser humano, o Ameriquinho do Bairro foi o último de oito irmãos (Padre José, Joaquim, Maria, Jaime, João, António, Zeferino), no lar ancestral de Teresa Ferreira Rodrigues e Ramiro Monteiro de Aguiar, que contraíram matrimónio em 23 de Outubro de 1873, em Paço de Sousa. Foi baptizado pelo Padre António da Rocha Reis, em 4 de Novembro desse ano, com o nome do Bispo da Diocese, Cardeal D. Américo, na Igreja Paroquial; aí fez também a Primeira Comunhão, tendo aprendido a doutrina cristã rapidamente, ensinada pela Rosa do Bento. Iniciou os estudos na Escola régia, em Pereiras (Galegos).
Do sortilégio do torrão natal, pelo seu próprio punho, dei- xou-nos um panorama de beleza: Que lindo sítio e que linda casa, aquela em que nasci. Por detrás, estende-se uma grande mata cheia de sombra e de pinheiros; à frente correm os prados verdejantes, uns após outros, até se perderem muito longe, na margem dum ribeirito que os limita e lá mais longe ainda, muito ao longe o céu fecha o horizonte pousando no dorso da serra de Luzim! Tão lindo o sítio; tão linda a casa! A afeição que sentia pela sua mãe foi retratada assim: A minha mãezinha, a mulher mais fresca e linda do mundo inteiro [...]. Eu era o mais novito e ia sempre à lareira buscar um mimo que minha mãe me guar- dava; gostava tanto de ver aquela grande fogueira crepitar por entre as panelas... Todos os dias a mesma fogueira, o mesmo lume, e sempre lume novo! Sempre lume novo! O sonho de uma criança é ser grande, e assim aconteceu com Américo: Quando eu era pequenino, ia ceifar erva nos campos, na companhia de outros irmãos. Ao regressar, em vez de ir directamente lançar a erva ao palheiro, ficava de cesto à cabeça, a chamar pela mãe que viesse ver. - Olhe o meu cesto como é grande! E esperava até que ela viesse. Ela ajudava-me, sem dar fé. Os irmãos chamavam-lhe beato. Desde pequenino, foi tocado por uma grande inquietação: revelar Cristo. Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes. Ora vejamos uma confissão sua: O pobre é a minha glória. Por ele sou conhecido e naturalmente amado. Nasci com esta devoção. Em pequenino, furtava coisas à minha mãe. Quantas vezes indo ela à salgadeira e notava a falta de coisas, punha a língua no meu nome e nunca se enganou. Na verdade, Américo desabrochou cedo para o exercício das Obras de Misericórdia, pois desde criança gostava de socorrer os Pobres. Da eira e das arcas aprendia a repartir.
Fez o exame de instrução primária (4.ª Classe) no Colégio de Nossa Senhora do Carmo, em Penafiel, em 8 de Agosto de 1899; e seguiu em Outubro para o Colégio vicentino de Santa Quitéria, em Felgueiras, sendo um rapaz de boa conduta espiritual. Em 1 de Junho de 1902, a sua mãe Teresa escreveu ao filho mais velho, Padre José, Missionário no Oriente, o seguinte: Peço-te que me dês andamento a este embaraço em que eu me vejo com este rapaz: ele tem muita vontade de ser Padre. Vamos a ver se agora o podemos apanhar. Tinha ele 14 anos. O rapazito não conseguiu dar seguimento ao apelo porque o pai Ramiro se opôs, aliás rectamente intencionado: Comércio, comércio, não tem vocação para Padre! Com 15 anos, foi para uma loja de ferragens, a vender ferros, na Rua Mouzinho da Silveira, perto do Seminário da Sé, no Porto. Aí encontrou-se com o Cónego Dr. Manuel Luís Coelho da Silva, Vigário Geral, que esperava o carro da praça do Infante: Logo de dentro saía um petiz a oferecer-lhe um banco. Permaneceram amigos para sempre! Confessava-se assiduamente e ajudava à Missa na Igreja de S. Lourenço. Foi crismado na Sé Catedral do Porto, pelo Bispo D. António Barroso. Em 12 de Outubro de 1905, foi matriculado no curso superior de comércio, no Instituto Industrial do Porto.
AMÉRICO D'AGUIAR
O Sr. Américo
Depois, com 19 anos, em 19 de Novembro de 1906, partiu para Moçambique, onde estava o irmão Jaime Aguiar. Foi num cenário de crescimento económico da África portuguesa até aos anos 1920, que, num período de dezasseis anos, Américo de Aguiar fez uma carreira comercial de sucesso. De 1907 a 1921, foi um funcionário competente da firma inglesa The British Central Africa, no Chinde. Ganhava muito dinheiro, mas repartia-o com os pobres.
A década que medeia entre 12 de Dezembro de 1913, em que morreu a sua mãe Teresa, e Outubro de 1923 representa um transcurso de tempo de crise religiosa. O contexto eclesial de Moçambique estava marcado positivamente pela presença dos Franciscanos que se tinham estabelecido na Beira em 1898. Em 1914, conheceu nessa cidade o franciscano Padre Rafael Maria da Assunção. Foi um encontro ocasional que recomeçou a rasgar o seu horizonte vocacional. A partir da I Guerra Mundial, configurou-se um cenário de múltiplos sofrimentos. Américo de Aguiar parecia um homem fugido de si mesmo e sujeito de uma vida atribulada. Em 1921 foi para Lourenço Marques, onde trabalhou na casa alemã Breyner & Wirth. Nesse ano, em 5 de Agosto, morreu o seu pai, Ramiro, e agudizou-se uma crise de índole espiritual. Os colóquios com o Padre Rafael tornaram-se mais intensos a partir de 1922 e, ao acompanhá-lo no seu discernimento, este sacerdote abriu-lhe o Caminho da Luz, conforme escreveu. Desse tempo, registou: Começou então a luta. O homem e a Graça. Esta havia de vencer, sim, mas até aí, quanta dor, meu Deus! No II Concílio do Vaticano, esta temática inclui-se no chamamento universal à santidade, que não acontece por merecimento próprio, mas pela Graça e vontade de Deus.
FREI AMÉRICO DE SANTA TERESA
Em Julho de 1923, sofreu uma martelada forte, como confidenciou ao Padre Avelino Soares. Tinha 35 anos. Hesitava no seu regresso a África e chegou a comprar passagem. Porém, em Lisboa, à última hora, Deus desferiu o golpe final no seu coração, através de outra martelada. Confessou que não resistiu mais. Procurou os franciscanos na Galiza, apaixonado pelo Pobrezinho de Assis, ingressando no Convento de Vilariño de la Ramallosa, para onde partira a 21 de Outubro de 1923. Chegou a tomar hábito de noviço franciscano, com o nome de Frei Américo de Santa Teresa, em 14 de Agosto de 1924. Contudo, em 6 de Agosto de 1925 foi aconselhado a sair, pois não assimilava a vida monástica por ser muito impressionista. Isto é, em virtude da sua dedicação aos frades idosos e doentes. Era incorrigível na caridade, como testemunha o Padre José David Antunes, OFM, que nos escreveu: Era tão grande, tão grande que não cabia entre nós. O Padre António de Sousa Araújo, OFM, escreveu que: Ninguém perdeu. Todos ganharam. E neste passo ainda era segredo de Deus o que ele iria ser ainda nos seus restantes e fecundíssimos anos de vida e santidade.
AMÉRICO DE AGUIAR
Seminarista
Depois, procurou a sua admissão no Seminário do Porto; porém, foi admitido no Seminário Episcopal de Coimbra, em 3 de Outubro de 1925, pelo Bispo D. Manuel Luís Coelho da Silva, e recomendado pelo Padre Inocêncio do Nascimento, OFM. Ia fazer 38 anos. Em 1925-26, frequentou as aulas de Filosofia; e, entre 1926 e 1930, fez o curso quadrienal de Teologia. Houve um percalço em canto gregoriano. Tanto colegas como professores distinguiam nele a sua caridade e o amor à Eucaristia e à oração. Segundo o condiscípulo Padre Augusto Nunes Pereira, o seu amor à Eucaristia era tal que não se conformava com o regulamento de Sexta-feira Santa proibindo a Sagrada Comunhão. De uma vez insistiu tanto que lha ministraram naquele dia. Colaborou na revista dos alunos do Seminário de Coimbra - Lume Novo, desde o n.º 1, de 8 de Dezembro de 1926, sobre o franciscano pseudónimo Frei Junípero, até ao n.º 13 de Junho de 1930, revelando já o seu talento para escrever. A sua colaboração literária apresenta belos trechos de cariz autobiográfico e nela se desenha um fecundo escritor cristão. Não o pretendeu ser, mas esta faceta veio a cumprir-se com arte, embebida pelas chagas sociais, enriquecida pela linguagem popular e vivificada pela Escritura que transpira com frequência. A sua correspondência demonstra que se servia já muito do Novo Testamento, como os Evangelhos e as Cartas de S. Paulo, para fundamentar as suas reflexões de conteúdo doutrinal. Em 1947, escreveu: Tenho só um livro: é o Novo Testamento. Começo no princípio e vou por aí fora até ao fim. Torno a começar e vou, vou, vou, até acabar. Isto durante um ano. Isto durante dois. Isto sempre. São perigosos os homens de um só livro e podem vir a ser incendiários. Cautela! Em 31 de Março de 1926, numa missiva a António Moreira da Rocha, escreveu: A vida [do sacerdócio ministerial] é cheia de dificuldades e só se pode equilibrar por meio das forças ocultas da oração e sacrifício. Este é o segredo dos Grandes que venceram a vida, pequenos e ridículos aos olhos de toda a gente. [...] Tome lá esta máxima e escreva-a na parede do seu quarto e da sua alma: ama nesciri et pro nihilo reputari [deseja que não te conheçam nem estimem]. Era a sua divisa, conforme autografou, tirada do célebre livro Imitação de Cristo. Continuava a manifestar a sua devoção pelos Pobres, desenvolvendo o culto do Pobre, conforme carta de 20 de Janeiro de 1927, ao amigo Simão Correia Neves, no Funchal: Vem aqui todos os dias certa mulher buscar uma panela de caldo para ela, uma filha e quatro netos, obra de ex-estudantes, ocupando todos os seis um mísero cubículo sem luz nem ar. Esperava-o, em Coimbra, uma visita providencial: o Padre Matéo. O grande apóstolo do Sagrado Coração de Jesus veio a Portugal no final de 1927. Em missiva ao irmão Jaime Aguiar, de 27 de Fevereiro de 1928, desvendou um segredo: À última [conferência] não fui. Desejaria imenso ir. Oh, sim. Desejara. Não fui. Um sacrifício. Durante a conferência conversei com Deus, de joelhos. Pedi para que aqueles intelectuais vissem todos o que eu dantes não via e agora vejo. Mas pelo menos um, Senhor, disse eu. Em Junho de 1928, escreveu ao seu Bispo D. Manuel Luís: No conceito da sociedade que abandonei, o Padre é um homem inútil e prejudicial; a Religião, uma fábula e Deus, um mito. Eu mesmo assim considerava e confessava as coisas! Hoje, porém, vejo a verdade e quero convencer os que deixei. Com argumentos? Inútil. Como então? Subindo para que me vejam. Subir como? Desprendendo-me do que tenho e do que sou. Em Outubro de 1928, comprometeu-se por livre decisão com os votos de pobreza e de obediência, prestados ao seu Bispo; e quis vivê-los como Padre diocesano, à imitação de Cristo que se fez pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza. Deixou assim escrito: Não ando sozinho. Quero viver da obediência aos Bispos; alimentar-me da autoridade deles como as crianças nos seios das mães se alimentam da substância delas. Fora da Igreja, nada de grande; contra ela, muito menos.
PADRE AMÉRICO!
Em 7 de Abril de 1929, foi ordenado Diácono pelo Bispo Coadjutor de Coimbra, D. António Antunes. E em 28 de Julho de 1929, com 41 anos, na Capela de Nossa Senhora da Anunciação, no Seminário Episcopal de Coimbra, recebeu a Ordem de Presbítero das mãos do mesmo Bispo que o aco- lhera no Seminário, D. Manuel Luís, sobre o qual escreveu: Deu-me Ordens Sacras, fez-me Sacerdote: o maior de todos os títulos, para a maior de todas as gratidões. Daí em diante pas- sou a assinar o nome de baptismo acrescido do título, bem como de um significativo ponto de exclamação, admirado com esta maravilha de Deus: P. Américo! E exprimiu: Já não tenho tempo de perder mais tempo. Em 5 de Agosto, celebrou uma segunda Missa Nova na Igreja Paroquial do Salvador de Paço de Sousa.
Foi nomeado Prefeito e Professor de Português dos preparatórios do Seminário de Coimbra. Ouvinte atento da palavra, começava a distinguir-se na pregação. Padecendo de esgotamento, insistiu por duas vezes (em 1929 e 1931) na readmissão aos Franciscanos, o que não se concretizou. Na sua vida pessoal e na exigência do seu ministério, devia muito ao espírito franciscano e confiava inteiramente na Providência Divina, como revelou: Sinto desejos de ser Francisco de Assis, para abraçar este espaço imenso de luz e de vida, desprendido como o Pobrezinho, de tudo quanto possa ligar a gente às ninharias do mundo. Entretanto, em 1930, foi Capelão em Casais do Campo e também celebrava na Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e no Asilo da Mendicidade. Em Novembro desse ano, foi nomeado Director diocesano da Medalha miraculosa. O Cónego Dr. Trindade Salgueiro vaticinou: Deixem-no determinar-se.
PAI AMÉRICO
Neste itinerário vocacional, o seu Bispo enviou-o depois para a evangelização dos pobres que era a sua paixão, a exemplo de S. Vicente de Paulo. Enfermo com dores de cabeça, determinou-se finalmente quando, em 19 de Março de 1932, festa de S. José, D. Manuel Luís lhe entregou a responsabilidade de uma obra diocesana para indigentes - a Sopa dos Pobres, na Rua da Matemática, em Coimbra, mandando-o cuidar deles, em missão que foi sempre da Igreja: A caridade nasceu na Igreja há vinte séculos e nunca saiu de ao pé da Mãe. Entregou-se a ela com entusiasmo, realizando o seu carisma pessoal como Recoveiro dos Pobres, acertando com a cura: Um padrezinho da cidade de Coimbra pediu e obteve licença do seu Prelado para visitar pobres e cuidar deles, dentro de suas próprias habitações, para melhor conhecer seus nomes e mais eficazmente os servir. Mais: tomou esta missão por não servir para mais nada, conforme escreveu.
Em Outubro
de 1932, foi nomeado ainda
Confessor ordinário das
Religiosas do Bom Pastor do Refúgio da Rainha Santa Isabel. Em Maio de 1934, também serviu
como Capelão da Casa
de Saúde, na Rua da Sofia, em Coimbra. Dado àquela missão com licença
superior, não tardou
que fosse tido por imprudente e como tal denunciado ao seu Bispo,
que não se manifestou. Pela sua actuação
entre os doentes,
nos hospitais e sanatórios, tomaram-no por indesejável e pediram ao Prelado que o desterrasse, o que foi ignorado. Pelas suas inconveniências,
foi mandado retirar de membro actuante no Patronato das Prisões, pelo Ministro da
Justiça. A Caridade faz sangue e cura feridas! Sob o sinal da Cruz, suou sangue: foi sovado, assobiado por usar batina e dizer Missa no altar,
recebeu cartas anónimas, apreciações malsinadas e ameaças. Ainda se destacava
com a sua doutrinação, como interpretação prática da Caridade evangélica, nos
púlpitos e nas crónicas semanais do jornal Correio de Coimbra, depois recolhidas em livro. Contudo, afastado dos Pobres, Doentes
e Reclusos (que sempre visitou
e ajudou), deu-se às crianças da rua, como S. João Bosco. Eis esta sua
bela oração: Senhor Jesus, eu não troco por nada deste mundo a suprema ventura de curar com panos de linho os membros doentes do Vosso Corpo, considerados sem cura!
De 1935 a 1939 promoveu as Colónias de Campo do Garoto da Baixa (de Coimbra), em S. Pedro de Alva e Vila Nova do Ceira. Em 30 de Março de 1938, foi aprovado o seu contrato como Assistente Religioso do Refúgio da Tutoria Central da Infância de Coimbra. Decorridos sete anos, a sua acção nas ruas de Coimbra desabrochou assim na Obra da Rua. Em 7 de Janeiro de 1940, dia do Santíssimo Nome de Jesus, fundou a Casa de Repouso do Gaiato Pobre, em Miranda do Corvo, para crianças abandonadas e sem família, sob a divisa Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes. A Obra da Rua foi crescendo como uma bola de neve, sendo uma Obra eminentemente social e familiar. Escreveu assim: Em nome de Deus quero solenemente declarar hoje, aos amigos da Obra, que ela foi criada e lançada para amparar dignamente o Filho da Família Pobre. Na missão sublime de educar, Pai Américo deixou uma bela confidência: Há um segredo divino no meu palmilhar de cada dia, que me não deixa cair no chão: eu desejo encontrar na Eternidade, sentados à direita do Pai Celeste, todos aqueles garotos que me passam pala mão. Actualmente, há mais seis Casas do Gaiato: Paço de Sousa (1943, sede da Obra da Rua), Beire (1954, Paredes), Setúbal (1955), Benguela e Malanje (1963, Angola), e Maputo (1967, Moçambique). Em 1941, fundou o Lar do Ex-Pupilo dos Reformatórios e das Tutorias, em Coimbra. Em 1945, abriu o primeiro Lar do Gaiato no Porto, seguindo-se Coimbra, Lisboa e Setúbal. Em 1951, fundou o Património dos Pobres, sob o lema Cada freguesia cuide dos seus pobres, tendo sido construídas mais de 3500 moradias em Portugal continental, Madeira e Açores, Angola e Moçambique. A exemplo de S. João de Deus, a última inspiração foi o Calvário, para doentes pobres incuráveis e abandonados, que funciona em Beire, desde 16 de Julho de 1957. São belas estas palavras que escreveu: Ai da Obra da Rua se não fosse da Igreja! Ai de mim, se eu não fosse da Igreja! Que podia eu sem ela? E que não posso eu com ela? Efectuou várias viagens, na sua missão: em 1949, foi ao Brasil; entre Julho e Outubro de 1952, fez uma viagem a África (Angola e Moçambique); e em 1956 fez uma viagem à Madeira e outra aos Açores.
Na comunicação escrita, colaborou ainda no jornal A Ordem (Porto). Finalmente, em 5 de Março de 1944, fundou o jornal O Gaiato, quinzenário da Obra da Rua. Estão publicados, para já, onze títulos das obras do autor: Pão dos Pobres, Obra da Rua, Isto é a Casa do Gaiato, O Barredo, Ovo de Colombo, Viagens, Doutrina, Cantinho dos Rapazes, Notas da Quinzena, De como Eu Fui..., Correspondência dos Leitores. Bem se pode aplicar ao Padre Américo esta afirmação escrita sob o pseudónimo de Frei Junípero: Os homens que fazem a história da literatura deixando nela os seus nomes também deixam o carácter nas linhas das suas obras imortais e nós, que não temos o prurido de fazer história nem de imortalizar as nossas obras, não estamos no entanto isentos do mesmo princípio. O escritor não diz só o que escreve; diz também o que é. Do seu riquíssimo tesouro literário, marcado por profunda espiritualidade cristã, respigamos ainda uma mão-cheia de pérolas:
Não escolhi nem recebi jamais preparação para a vida que hoje tenho: isto foi uma rasteira... divina! Quero regressar à Toca. Não que eu aprove ou me ache ali bem, mas gosto de aliviar penas gemendo aos pés dos que gemem e assim salvo a minha alma.
Certa maré, entrei na casa de uma leprosa de quem não se fazia caso, por medo do contágio. A roupa era aos montes, que as lavadeiras não lhe pegavam. - Eh! Tantos farrapos, disse. - Sim, Padre; tudo farrapos, menos o meu sofrimento!
Meus filhos: [...] Há outra coisa muito importante, muitíssimo importante, à qual desde agora deves atender. Quero referir-me à consciência. A consciência é uma coisa que está dentro de ti, que te pica naquela mesma ocasião em que praticas as acções e te diz se elas são boas ou más. Mas faz mais a consciência: julga-te. Ela não espera por ninguém que o venha fazer. Julga ela mesma, pela força e pelo saber que tens. Tu nunca estás só. De nada vale a gente esconder-se. Para onde quer que vás, onde quer que estejas, lá está o juiz. A consciência é a voz do nosso Bom Deus a chamar por ti, a dizer que te espera, a declarar-Se Pai.
Nós somos todos feitos de amor, para amar. Cada um de nós é um milagre de amor, do amor infinito de Deus, e uma vez dentro da vida, temos de a realizar... amando.
Eu quero os meus filhos no Paraíso.
AMÉRICO MONTEIRO D'AGUIAR
Presbítero
Em 14 de Julho de 1956, sofreu um acidente de automóvel, em S. Martinho do Campo (Valongo) e faleceu no Hospital Geral de Santo António (Porto), em 16 de Julho, dia de Nossa Senhora do Carmo. Tinha afirmado: Sou da Santa Madre Igreja Católica, aonde espero morrer. Na sua última vontade, deixou isto: Não desejo os paramentos do altar, mas somente a batina e descalço. O seu corpo esteve na Igreja da Trindade, aonde acorreram muitas pessoas a chorar o Pai dos Pobres. O Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, exprimiu-se assim: Está de luto a Igreja em Portugal e mais órfãos os rapazes da rua. Jaz em campa rasa na Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, desde 17 de Julho de 1961, com a inscrição: ERA 1956/AMÉRICO MONTEIRO D'AGUIAR/PRESBÍTERO. Na verdade, cumpriu-se na sua vida o que escreveu com profunda convicção: A missão do Padre é um mistério de luz.
O SERVO DE DEUS
Américo Monteiro de Aguiar
É oportunidade, ainda, de fazermos luz sobre um extracto de um belíssimo naco de prosa que o Padre Américo nos deixou, escrito depois do segundo conflito mundial e num salutar regresso às fontes. Como trilhou, desde cedo, o Caminho certo, esta luz não é para ficar debaixo do alqueire. Eis, na sua beleza, a única certeza: Quantos santos sem canonização! Justamente hoje, à estação da Missa, preguei o evangelho do dia aos meus Rapazes e disse que não tivessem medo da palavra santo. Ser santo. E por aqui adiante, fui-lhes dizendo que em toda a parte, a todo o tempo, qualquer que seja a condição de vida, podemos desejar e abraçar aquele ideal: a cavar as terras, a bater ferro, a picar pedra, a fazer botas, a cortar pano, a advogar causas, a curar enfermos, a dizer Missa. Os rapazes escutavam, pasmados. Sim, prosseguia eu: Basta-te luz e força. A luz é tudo. Sem essa luz, nada. Eu sou a Luz. Nunca nenhum mortal se atreveu a dizer de si uma coisa tão simples! Essa luz, rapazes. Depois, força. Força para fazer o Bem e força para evi- tar o mal. Dois caminhos, duas forças. Finalmente, para não demorar os ouvintes, então, nem agora, os leitores, esclareci: o santo é o homem que vive na sua vida a Vida de Deus. Vive-a hora a hora a cair e a levantar-se, a prometer e a faltar, que isso é tudo quanto ele pode fazer. O resto vem de Deus.
Milhares de pessoas têm vindo rezar junto dos seus restos mortais, convencidas de que, tendo sido tão caridoso na Terra, o será também no Céu. Em 1965, alguns Bispos portugueses afirmaram que o Padre Américo tinha o carisma da evangelização dos Pobres. No centenário do seu nascimento (1987), em nota pastoral, a Conferência Episcopal Portuguesa afirmou que a História da Igreja entre nós, neste século, não se poderá fazer sem lhe reconhecer lugar de primeiro plano. Em 22 de Março de 1986, a Obra da Rua pediu ao Bispo do Porto, D. Júlio Tavares Rebimbas, a introdução da sua Causa de Beatificação; e foi nomeado como Postulador D. Gabriel de Sousa, O.S.B. O Bispo do Porto fez o pedido à Santa Sé a 15 de Setembro desse ano. Em 6 de Novembro de 1990, foi dado o nihil obstat. Em 14 de Fevereiro de 1991, tomou posse o Tribunal Eclesiástico para dar início ao Processo Ordinário de glorificação canónica. A sessão pública de encerramento desta primeira fase aconteceu a 16 de Julho de 1995, na Sé Catedral do Porto. Em 1 de Abril de 1996, foi aberto o seu Processo na Congregação para as Causas dos Santos, tendo sido nomeado Postulador Mons. Doutor Arnaldo Pinto Cardoso. Em 18 de Outubro de 1997, foi publi- cado o decreto de validade da Causa de Beatificação do Servo de Deus Américo Monteiro de Aguiar. Em 2004, foi impressa e entregue a Positio super vita, virtutibus et fama sanctitatis Servi Dei Americi Monteiro de Aguiar, Sacerdotis Diocesani (1887- 1956). Em 2014, teve início a publicação do Boletim AMA, do Servo de Deus Américo Monteiro de Aguiar.
Já canonizado no coração do povo como santo dos pobres, o Bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, foi claro no seu propósito: Pertence-nos implorar de Deus a sua beati- ficação e canonização para que a sua presença e a sua bênção se afirmem mais claramente em nós, e na sua vida e missão encontremos um exemplo a seguir.
O Padre Américo foi um dom à Igreja e ao mundo, no anúncio da Palavra da Fé e com o seu testemunho de vida, no serviço humilde da Caridade, em nome da Igreja e na pessoa de Cristo Cabeça, Pastor e Servo: Sim; sirvo os Pobres nas cadeias, nos hospitais, nos tugúrios, nos caminhos e no altar. Na verdade, o Altar era o segredo da sua vida. O Santo Papa João XXIII preconizou e a Constituição Dogmática Lumen Gentium proclamou: A Igreja reconhece nos Pobres e nos que sofrem a imagem do seu Fundador pobre e sofredor.
Neste Ano Santo da Misericórdia, convocado pelo Papa Francisco, o exemplo do Padre Américo é, humildemente, de ter em conta, também para que a união de toda a Igreja aumente com o exercício da caridade fraterna. Foi um Padre feliz, na Igreja e no mundo, conforme desejou para os seus filhos. Mesmo dilacerado pelas dores do sofrimento humano, deixou-nos estas belas palavras de grande escritor português, realista e cristão: Eu tenho vivido de cantigas; primeiro no regaço quente de minha mãe; mais tarde no sorriso fagueiro do mundo; e agora, que não vivo de cantigas, sou cantador! Sou o cantador. Misericordias domini in aeternum cantabo.
[Instrumentum laboris para uso exclusivo da Recolecção de Advento, dos Padres da Diocese do Porto, no Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição - Porto, em 22 de Novembro de 2016.]